Sob o auspício de um funesto céu da côr das cinzas, tão próprio de Julho... sim! esse mesmo Julho de intermináveis chuvas e ventanias, a somar a esse sobejo, permanente calor bafejante, coisa pegajosa a colar as roupas ao corpo mal se sai de casa — estamos em plena Tsuyu (梅雨), Estação das Chuvas, a tal que medeia entre a Primavera das Sakura e o Verão propriamente dito...—, ao cair da tarde de Quinta-Feira, lá nos fizemos ao caminho e partimos em busca desses 'nippo-barrocos' Yamakasa (山笠), enormes andores, ou melhor "santuários flutuantes" como alguns preferem apelida-los, ostentando tanto de genuinamente japónico quanto de 'kitsch', entregues, assim, solenes, às ruas da Cidade das Colinas Prósperas, aguardando impávidos e altivos o grande dia do Hakata Gion Yamakasa (博多祇園山笠), 'matsuri' de primeira importância para as gentes de Hakata/Fukuoka e Kyushu--Norte, e de cuja impressionante corrida de andores — ditos kakiyamakasa (舁き山笠 — lit.: «andores flutuantes») aqui ➷ vos deixo uma breve impressão.
A história do Hakata Gion Yamakasa remonta ao ano de 1241 da nossa era, vivia então, o Japão, em pleno Período Kamakura (鎌倉時代), quando uma mortífera praga se alastrou pela baía de Hakata e as gentes da região cuidaram de trazer em seu auxílio um reputado sacerdote Shintoo que foi trazido a toda a pressa à cidade portuária pelos homens da terra, transportado em corrida pelas ruas num enorme palanquim e levado com urgência aos mais recônditos cantos da cidade com o fito de exorcizar os demónios que haviam trazido tamanha morte e infortúnio ao pobre povo.
Rezam as crónicas que foi de tal ordem a gesta heróica dos homens do porto Hakata, no esforço de levar o santo homem em correria pelas estreitas vias, assoladas pela traiçoeira peste, entre o casario ao longo dos muitos canais que demarcam os vários bairros tradicionais de Hakata, que, em louvor e gratidão aos bravos desse dia, as gentes de cada Nagare (流 — 'ribeiro' ou 'canal', designação dada aos bairros antigos de Hakata) houveram de, a cada ano que passa, em Julho, tratar de erguer um palanquim idêntico ao dessa egrégia jornada, re-encenando e celebrando com a devida solenidade ritual a proeza e a nobreza atávica dos seus antepassados e dos Espíritos alados que os guiaram nessa feita.
São, ao todo, sete os Nagare representados no Hakata Gion Yamakasa, cada um se fazendo representar pelo seu kakiyamakasa (舁き山笠), de dimensões compreendidas entre 5 e 6 metros de altura e cerca de uma tonelada de pêso.
O lugar da nossa residência situa-se bem no centro do 'teatro de operações' do Hakata Gion Yamakasa, e em particular da 'àrea de ensaios' do Ebisu Nagare — 恵比須流 — e muito próximo da zona do Chiyo Nagare — 千代流 —, e, na Quinta-Feira da semana passada, ao deambularmos pela cidade ao cair da tarde, foi precisamente o kakiyamakasa deste bairro, o primeiro com que deparámos.
Confesso que não fui capaz de identificar o personagem, espírito ou kami (神) representado no kakiyamakasa do bairro de Chiyo. Esclarece-me, a Etsu, de que se trata de Tachibana Muneshige — 立花宗茨, 1567 - 1642 —, Samurai e General, vassalo de Toyotomi Hideyoshi, e pouco mais vos posso dizer sobre tão ilustre personagem, além da minha suposição de que seria, certamente, homem bem conhecido dos NanBan do seu tempo.
De volta pelo território do Ebisu Nagare, o respectivo kakiyamakasa não deixa margem de maior para dúvidas.
A figura no topo do andor, fazendo-se acompanhar de um peixe gigante, trata-se, inequivocamente, de Yebisu (ou simplesmente Ebisu)-No-Kami (恵比須の神), um dos 'Sete Deuses da Boa-Fortuna' — 七副神, Shichi Fuku'Jin —, também conhecido por Hiruko (蛭子), kami (神, 'deidade' ou 'espírito') protector dos pescadores e 'deus dos negócios e da prosperidade'. O próprio empresta seu nome a uma pequena ponte nesta área, que oportunamente fotografei e convosco partilhei há alguns meses.
De caminho pela longa e movimentada Taihaku-Dori (大博通り — Avenida da Grande Sabedoria), deparamo-nos com o primeiro dos gigantescos kazari'yamakasa (飾り山笠), 'andores' com propósitos óbvia e meramente decorativos, como o termo 'kazari' (飾り— 'ornamental' ou 'decorativo') evidencia.
Os enormes kazari'yamakasa atingem, via de regra, entre 15 a 17 metros de altura e pesam várias toneladas, não sendo, por isso, adequados a passeatas sobre mãos humanas, limitando-se, pois, a assentar arraiais nas principais artérias da cidade, cumprindo o estrito propósito de publicitar a saison do grande 'matsuri' que se anuncia para os próximos dias.
A miríade de figuras e côres que compõem estas colossais estruturas, fá-las, de facto, tão vistosas quão confusas, e confesso que, no decurso deste nosso passeio, quase não logrei identificar uma só figura que fôsse entre as inúmeras efígies em exibição...
Mais adiante, em Meiji-Dori (明治通り), próximo do imponente Hakata-Za — 博多座, soberano teatro de Kabuki da cidade —, um outro carnavalesco kazari'yamakasa.
Não muito longe, o kakiyamakasa de um outro Nagare, desta feita o Dai'koku Nagare (大黒流), que toma o seu nome de empréstimo a um outro dos ditos 'Sete Deuses da Boa-Fortuna' — 七副神, Shichi Fuku'Jin —, desta feita ao Daikoku'Ten — 大黒天 — ou Daheitan, estranho nome que significa, literalmente, «O Grande Céu Negro», e cujo desempenho, nesse restrito panteão de 'deuses-do-acaso', é o de "deus do comércio e dos bons negócios", sendo comum encontrar o seu distinto rosto negro em várias lojas por esse Japão fora. E é o próprio a pontificar neste singelo palanquim...
...E ainda, passando uma vez mais por Meiji-Dori...
Num mercado popular mesmo defronte, encontramos, poucos metros adiante, este simpático kazari'yamakasa dedicado aos mais pequenos...
Outros, deveras curiosos e tematicamente bem mais complexos, vão surgindo de caminho...
Aqui um outro kazari'yamakasa dedicado às deidades do Vento (Fujin — 風神) e do Trovão (Raijin — 雷神), mas pareceu-me haver, entre os transeuntes (locais, e por via de um ou outro comentário que pude escutar), quem não soubesse identificar estes dois kami omnipresentes onde quer que vamos no Japão...
Ainda, do exterior do mesmo complexo comercial...
...E passando por Nakasu (中州), o nosso animado "red light district"...
Já longe de Hakata-Ku (博多区), próximo da zona chique de Yakuin (薬院), um outro kazari'yamakasa de temática infanto-juvenil, mas cujos personagens, confesso, nada me dizem...
Se algum dos meus queridos leitores me puder elucidar sobre a identidade de tão pitorescas figuras, a gerência agradece.
Já na retaguarda deste último, reconheço umas das mais célebres lendas e narrativas legadas de um certo Japão d'outrora... sim, daquelas que mais cativa o nosso imaginário colectivo...
O temível remo de batel talhado em jeito de bokken identifica, sem margem para dúvidas, a figura que o ergue em intrépido vôo sobre o adversário... Deste, não dúvido que, do mais novo ao mais idoso dos transeuntes, não haja um só que não saiba de quem se trata...
O Hakata Gion Yamakasa realiza-se pela madrugada do próximo dia 15 de Julho.
Incrível!
ResponderEliminarBoa madrugada de dia 15 de Julho.
Não sei se chego a tempo. :)
Olá Ana.
ResponderEliminarCom as chuvas torrenciais que vêm consumindo os dias e as noites por estas bandas, desde há duas semanas, não sei se este ano me aventuro noite adentro para fotografar/filmar o Yamakasa.
Mas lá que vale a pena ver isto ao vivo, lá isso vale, não haja dúvida.
Obrigado pela visita!
Feliz de a ver por cá.
NBJ