Entre o espólio de uma certa colecção privada no Japão, conta-se uma pintura absolutamente notável, com mais de quatrocentos anos, representando um picanço no alto de um junco seco.
Elaborada a tinta-da-china e medindo cerca de um metro e vinte por sessenta, esta excepcional imagem exibe uma tensão e uma clarividência de espírito que sugerem exceder largamente os modestos limites impostos pelos breves traços e estreitas dimensões que a compõem.
O picanço, a ave atenta, pousada no alto do junco, exprime uma atenção e uma concentração simplesmente extraordinárias; o bico proeminente, pronunciado numa breve, quase-cruel, curvatura; o olhar fixo contemplando o Vazio que se estende ali defronte... Trata-se, sem dúvida, de um pássaro como esses que, de quando em vez, observamos nos nossos terraços e jardins. Porém, ao fixarmos o nosso olhar nesta obra, é, na verdade, aquele um-só traço, longo, tenso e'inda assim fluído, esse que compõe o junco ou a quase totalidade da sua extensão, o elemento que mais nos intimida.
Principiando do fundo, à esquerda, e como que cortando a tela num só movimento ascendente que se detém num ponto coincidente com o seu centro, ele há ali uma graça e uma força cega, indómita, no fluir daquele um-só traço tenso e estacionário, enfrentando, desafiante, aquele 'Nada' no horizonte; e o observador é levado a concluir que o pintor desta obra seria, certamente, um homem absolutamente isento de qualquer medo. De outro modo, como poderia ele ter a confiança e simultaneamente a destreza únicas daquele um-só traço comparável tão-só ao golpe letal de uma espada afiada?
Ou, mais precisamente, 'Niten' era o seu nome em sede das belas-artes, sendo o mesmo melhor conhecido entre nós pelos nomes Shinmen Musashi [新免武蔵] ou Miyamoto Musashi [宮本武蔵].*
*in "Go'Sho'Rin — 五書輪 — O Livro Dos Cinco Anéis",
Miyamoto Musashi, do Prefácio
ed. bilingue Japonês-Inglês,
a cargo de William Scott Wilson e Matsumoto Michihiro,
Kodansha International, Tokyo, 2001.
É belíssimo, é daquelas pinturas que se podem estar a olhar indefinidamente até encontrar o vazio ou Zen.
ResponderEliminarParabéns pelo post. Fiquei com vontade de conhecer mais obras de "Dois Céus". :)
É difícil no meu entender tentar descrever uma obra de arte destas com o simples uso da palavra "beleza".
ResponderEliminarOu seja é isso, mas tal como o meu amigo descreveu tão bem é muito mais.
Tudo está imbuído de uma força e genialidade fora do comun.
Um artigo que li em tempos dizia que algumas grandes pinturas que foram feitas por samurais tornaram-se tão magnificamente geniais porque quando o artista as pintava dava tudo de si mesmo pois não sabia se estaria vivo noutra oportunidade para completar o quadro pois poderia perder a vida numa guerra ou em duelo.
Obrigado por partilhar isto.
É uma belíssima pintura, sem dúvida.
ResponderEliminarGostei dos links. A arte japonesa é fantabulosa!