Tempo ainda para uma breve crónica de Ano Novo.
Dia de Ano Novo no Japão é dia de oração.
Não há cidade, bairro, comuna, aldeia, que não tenha o seu Jinja (神社 - "santuário") de eleição, pronto a receber as preces dos fiéis locais em dias festivos - cada qual entregue a este ou aquele Kami (神 - "espírito/deus"), um Jinja é, por definição, relicário de coisas sérias, assim os de cá asseveram.
Daí, a solenidade própria de certos dias exigir que os devotos e respectivas famílias se dignem deslocar-se ao seu santuário local a fim de prestar tributo ao Kami venerado na sua comunidade. É assim o Shintoísmo (Shintoo - 神道 - "a Via dos Espíritos"), complexo legado de crenças animistas do Povo de Yamato, que, junto com o Budismo, completa o corpo sincrético-religioso do Japão.
Não há como escapar-lhe quando se vive aqui.
E porque também eu já vou carregando algo desta Grande Pátria Insular dentro de mim, dia 1 lá me fiz ao frio e à chuva e vai de ir, de manhã p'la fresca, ao Kushida-Jinja (櫛田神社), santuário-mór das gentes de Fukuoka/Hakata, de sua feita consagrado ao Tengu (天狗), estranha deidade semi-demoníaca e de má reputação segundo as sutras budistas; via de regra figurado numa máscara de côr vermelha ou negra representando um ancião de expressão feroz, espessas sobrancelhas franzidas e rangendo os dentes afiados, e destacando um distinto longo nariz que lhe confere a fisionamia mais característica.
O Tengu, sendo sobretudo conhecido como patrono dos Yamabushi (山伏), fraternidade monástico-militar da região de Kumano, próxima de Nara, a uns bons 500 km daqui, portanto, aqui confesso-vos não fazer a menor ideia de como se estabeleceu este culto na baía de Hakata, nem tão pouco que espécie de fervor, mística ou temor reverencial inspira, este demiurgo, aos locais.
Verdade verdadinha é que em dia de prece ninguém falta à chamada...
Por volta das 9:00 da manhã o cenário era este:
O cortejo dos devotos do Tengu seguia rua abaixo, dobrava a esquina, dava a volta ao quarteirão e parecia não cessar de crescer até por volta da hora de almoço que aqui coincide com o meio-dia...
E não seria o 1ºC. de temperatura no ar quem fôsse demover os crentes de prosseguir na sua demanda de ir colher o bom auspício ao narigudo Espírito. Ali, bem enfileirados ao frio, lá aguardavam estoicamente a sua vez de chegar junto do haiden (拝殿), relicário propriamente dito diante do qual se deposita a prece, suplica ou simples deferente vénia.
Os dois Komainu (狛犬) ou Shiishi (石獅子) - como por vezes são referidos aqui -, leões de guarda em bronze, completam o tríptico da entrada no recinto religioso.
Curioso adereço, este, ainda sobre as nossas cabeças ao transpormos o pórtico: representação do Sheng Xiao (生肖) chinês, ou Eto (干支), como lhe chamam os d'aqui
- esse Zodíaco d'Oriente, que nos mistifica...
...e lá íamos, passo a passo, chegando próximo do altar desta hermética liturgia, dando, de escapada, uma vista aqui e ali, nas omnipresentes bancas de doçaria, amuletos e souvenirs...
...Ah! Pois é o Ano Do Tigre - (Tora toshi [虎年])!
E a respectiva estatuária, neste dia, não poderia, de modo algum, escassear.
E já mais próximos do haiden, escutamos o rufar dos taiko (太鼓) que seguem, disciplinadamente, o entoar do solene mantra que ecôa do interior do relicário... E não cuideis de fazer juízos precipitados acerca de tão elaborado cerimonial.
Enquanto as orações decorrem, as insondáveis Miko (巫女), imprescindíveis auxiliares de acção religiosa, vão zelando escrupulosamente pelo asseio do recinto e observância de todas as exigências ritualísticas em curso...
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