(Este pertence, por uma questão de método, à série intitulada Capítulos Omissos, uma vez que iniciei a respectiva redacção há alguns meses, por altura da realização de vários debates, aqui no Japão, em torno do tema do "ANPO", como ele é aqui conhecido desde a da sua celebração, e pela altura em que se assinalavam 50 anos sobre a assinatura do dito — Maio de 1960. Por uma série de razões pu-lo de parte na altura. Hoje, Domingo, 6 de Fevereiro, ao escutar, por mero acaso, o tema musical que dá o título a este escrito, lembrei-me de o retomar. Até porque num tempo em que proliferam os levantamentos de rua noutras paragens do nosso Mundo, o tema ganha novo fôlego enquanto referência de outras experiências que a memória colectiva tende a displicenciar, virtude do discreto e quase-imperceptível passar-dos-anos, das décadas...)
Foto: Hamaya Hiroshi [濱谷浩], Junho de 1960, da série "A Chronicle Of Grief And Anger" |
Com a aprovação pela Dieta Nacional dominada pelos Liberais-Democratas (Conservadores) do Jimintō [自民党] então liderados por um dos principais artífices do 'milagre nipónico' pós-'45, Kishi Nobusuke [岸信介], o 'mentor' do "Sistema de '55", do mais controverso instrumento político-jurídico adoptado pelo país desde o desfecho da II Guerra Mundial, a jovem democracia nipónica submetia-se em Maio de 1960 ao seu primeiro grande teste.
Meros quinze anos volvidos sobre a hecatombe de '45, os fantasmas do belicismo de outros tempos conservavam-se ainda demasiado vivos e presentes para serem negligenciados por uma parte significativa da população que não compreendia como podia um país resguardado no mais escrupuloso pacifismo consagrado na Constituição de 1947, se comprometer agora com o recém-reconciliado amigo Americano, o tal que desta feita se assumia como protector de um Japão desarmado, de futuras hostilidades, não obstante tal processo implicar não apenas o reconhecimento da perda de uma significativa parcela da soberania da nação sobre o seu próprio território como a própria re-militarização do país, ainda que a expensas e por meios cedidos tão-só pelo novo Aliado, remetendo-o irreversivelmente para a esfera de influência político-militar deste, e depois de o processo inverso ter sido, paradoxal e unilateralmente imposto pelo seu outrora nemesis.
Os protestos "anti-Anpo" — a expressão "Anpo" surgindo enquanto abreviatura da complexa designação Nippon-koku to Amerika-gashūkoku to no Aida no Sōgo Kyōryoku oyobi Anzen Hoshō Jōyaku (日本国とアメリカ合衆国との間の相互協力及び安全保障条約), Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre os Estados Unidos da América e o Japão , também conhecido no Japão como Anpo Jōyaku (安保条約), contracção do mais extenso Anzenhoshō Jōyaku ( 安全保障条約) —, haviam sido mobilizados por uma frente comum, reunindo partidos de Esquerda — encabeçados à época pelo Partido Socialista do Japão [日本社会党 — Nihon Shakai-Tō] e pelo seu Secretário-Geral Asanuma Inejiro, assassinado em Outubro desse ano — e uniões sindicais várias entre as quais pontificava o Sindicato dos Professores do Japão, e durante cerca de dois meses, entre Maio e Junho de 1960, não houve um só dia em que as ruas de Tóquio e demais grandes cidades do país não fossem palco de monumentais manifestações de repúdio pela ratificação de tão iníquo tratado e de que as câmeras de então não dessem empolgado testemunho, com centenas de milhares de homens e mulheres de todas as classes etárias convergindo a passo firme para os centros políticos do seu país, empunhando cartazes e estandartes onde se liam veementes palavras de ordem de um empenho político-combativo das massas trabalhadoras como nunca antes o Império do Sol-Nascente presenciara.
Certo é que, uma vez ratificado, o mal-amado Anpo viera para ficar: o Japão não podia viver sem tamanho instrumento legal destinado à sua defesa, e isto simplesmente porque não havia alternativa, num tempo em que a Guerra Fria exigia que tudo e todos se preparassem para o pior que haveria de vir...
E ainda que o clima de contestação se prolongasse pela década de 60 adentro, culminado nas violentas acções da extrema-esquerda estudantil — os célebres Zenkyoto/Zengaku'Ren — em 1968-'69, com a improvável tomada de reféns e do campus da To'Dai (Universidade de Tóquio) pelos exaltados estudantes, em finais de '68, nada havia a fazer, num tempo em que se esgotavam as cedências ao extremar de posições.
A aventura pistoleira do Nihon Seki Gun [日本赤軍] — versão "Made in Japan" dess'outro Baader-Meinhof ou de umas certas Brigate Rosse, experiências frankensteineanas suas contemporâneas — pela década e meia seguinte adentro, encarregar-se-ia de entoar o canto-do-cisne da militância anti-Anpo iniciada em 1960, num último trágico-cómico acto que a memória comum cuidou de apagar dos seus arquivos.
Desses dias remotos resta-nos a música, na linda voz da bela Nishida Sachiko [西田佐知子].
O Anpo?
Esse ainda cá canta.
Certo é que, uma vez ratificado, o mal-amado Anpo viera para ficar: o Japão não podia viver sem tamanho instrumento legal destinado à sua defesa, e isto simplesmente porque não havia alternativa, num tempo em que a Guerra Fria exigia que tudo e todos se preparassem para o pior que haveria de vir...
E ainda que o clima de contestação se prolongasse pela década de 60 adentro, culminado nas violentas acções da extrema-esquerda estudantil — os célebres Zenkyoto/Zengaku'Ren — em 1968-'69, com a improvável tomada de reféns e do campus da To'Dai (Universidade de Tóquio) pelos exaltados estudantes, em finais de '68, nada havia a fazer, num tempo em que se esgotavam as cedências ao extremar de posições.
A aventura pistoleira do Nihon Seki Gun [日本赤軍] — versão "Made in Japan" dess'outro Baader-Meinhof ou de umas certas Brigate Rosse, experiências frankensteineanas suas contemporâneas — pela década e meia seguinte adentro, encarregar-se-ia de entoar o canto-do-cisne da militância anti-Anpo iniciada em 1960, num último trágico-cómico acto que a memória comum cuidou de apagar dos seus arquivos.
Desses dias remotos resta-nos a música, na linda voz da bela Nishida Sachiko [西田佐知子].
O Anpo?
Esse ainda cá canta.
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Belíssimo post, meu caro.
ResponderEliminarAbraço.
(Se não estou em erro, estivemos ambos no almoço lusófono de apoio a Fernando Nobre - infelizmente não fomos apresentados... Eu sou o fulano alto de cabelo muito comprido que por lá tirou umas fotos.)
Caríssimo Amigo:
ResponderEliminarEu não seria, porque estou confinado a este meu exílio em terras de Yamato vai para três anos e já lá vão quase dois que não piso solo pátrio.
Em todo o caso, fico feliz pelo nosso encontro neste canal. ☺
Um Abraço do Japão,
NBJ
Meu caro amigo, tem toda a razão, por motivo do nick que usa confundi-o com o autor desta obra , pessoa que também está por terras do Oriente.
ResponderEliminarOs melhores cumprimentos! E parabéns pelo blogue que muito me agrada.