sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Capítulos Omissos (II): Quem Tem Medo De Kon Ichikawa?


[Vertido a conta-gotas e a parecer que nunca mais chegaria o dia em que o concluísse, atrasadíssimo, como já vai sendo meu (péssimo) hábito nestas coisas, cá vos deixo o artigo que planeara oferecer-vos no passado dia 13 de Fevereiro, por altura do meu último escrito neste "TLNBJ", homenageando o cineasta que hoje trago à conversa, pela data da sua morte, fez então dois anos. Um sem-número de afazeres a somar ao meu Shodan No Shiken nesse mesmo dia, impediram-me de o ter pronto a tempo de o publicar nessa data. Desde já as minhas mais sentidas desculpas... a Kon Ichikawa!...
(NOTA: no Japão os apelidados precedem o nome próprio, pelo que o seu nome correctamente inscrito será Ichikawa Kon — 市川 崑 —, não obstante, ao longo deste texto, refiro-o com recurso a ambos os 'tratamentos', o mesmo sucedendo eventualmente com outras personagens desta história. Pura arbitrariedade minha... e agora, sim, queiram desculpar-me por mais este incómodo!...)]



* * *

"Requiem Pour Un Kon"



Como o tempo passa...
Foi há dois anos, a 13 de Fevereiro de 2008, que a última das 'Grandes Lendas' do cinema Japonês, então com 92 anos de idade, e com aquela singular discrição que toda a vida lhe fora apanágio, se despediu do Mundo dos vivos.

Um espólio de cerca de oitenta filmes realizados ao longo de seis galopantes décadas de uma fecundidade e alcance quase sem paralelo na História do Cinema, e pouco ou nada se disse, então, do homem que deu ao século XX algumas das mais celebradas e revisitadas obras-primas da Sétima Arte 'made in Japan'.

De facto, in illo tempore, parece ter-se estatuído a ideia, algo vaga — algo sustentável —, de que uma certa Santíssima Trindade do Cinema Nipónico corresponderia, inequívocamente, a esse irredutível eixo Akira Kurosawa (黒澤明) + Yasujiro Ozu (小津安二郎) + Kenji Mizoguchi (溝口健二), espécie de triunvirato infalível, guardado a sete chaves em relicário próprio e imúne a disputas, e cujo panegírico parece ter-se destinado a ser reproduzido vezes sem conta, em livros muitos, teses académicas, colóquios, discursos e dissertações várias, conversas de esplanada, infopédias online, etc.

Porém, e ainda que, longe de pretender vir aqui encetar contendas sobre esta ou quaisquer outras questões, cabe, em todo o caso, indagar: que fazer, então, com a colossal obra de Kon Ichikawa (市川崑, 1915 - 2008)?


Foi por intermédio deste esmerado compêndio editado pelo Toronto International Film Festival Group, há uns anos poucos, estando eu ainda em Portugal, e tendo o mesmo me calhado fortuitamente às mãos, que descobri o nome de Ichikawa e o seu vasto e assombroso legado artístico. [Imagem: fotograma de "Enjô" — 炎上 —, 1958]

O autor dessa surpreendente colecção de textos e entrevistas, datada de 2001, James Quandt, oferece-nos, a título introdutório, algumas referências que nos permitem traçar o mapa desta epopeica aventura — e queiram perdoar-me a transcrição algo longa e fastidiosa deste trecho no respectivo Inglês original, mas sinto-me compelido a fazê-lo para poder prosseguir:

«Judging the accomplishment of Kon Ichikawa is more difficult than that of perhaps any other Japanese director. In a career extending from the mid thirties to the the present, he has made almost eighty films, widely variant in genre, theme, style and tone — alternately, often simultaneously, sardonic and sentimental, deadpan and apocalyptic. Perhaps because many have never been subtitled and only a handful has been distributed in the West, Ichikawa's reputation here now rests on fewer than ten films, most from one decade: three classics of postwar humanist cinema ("Nobi [野火] — Fires On The Plain", "Harp Of Burma [ビルマの竪琴]" and "Enjo [炎上]"), two social comedies based on Jun'ichiro Tanizaki's novels ("Kagi [鍵]— The Key", "Sasame Yuki [細雪] — The Makioka Sisters"), the wild comic spectacle, "An Actor's Revenge", and the documentary "Tokyo Olympiad", which has been released in many versions and continues to be the subject of considerable controversy.

«The problems of apprehension and evaluation posed by the diversity and magnitude of Ichikawa's oeuvre are compounded by other factors, notably the formidable influence of his wife and scenarist, Natto Wada (和田夏十), whose withdrawal from writing his scripts in the mid-sixties marked a turning point in his career; and the difficulties he encountered with studios, who occasionally punished his failures and transgressions by assigning him dubious projects, or hired him only on "salvage operations".

«Among the postwar Japanese masters, Ichikawa has long been an unlikely candidate for analysis; critical and curatorial interest increasingly focuses on the "expressive margins" of Japanese cinema, and, even if not always anti-canonical, has ignored or denigrated Ichikawa as an opportunist, a dandy, or a mere stylist. (French critics, with an innate auteurist bias, have largely disregarded his work, whereas British critics were among the first to champion it.) A similar preference for the extremes of the transcendental and domestic, or the kinetic and wanton, in Japanese film, forms a continuum on which Ichikawa's films can rarely be situated, further averting attention from him. While often referred to as a link between the "Golden Age" of Japanese cinema and the New Wave, Ichikawa has rarely been given his due as an innovator; his stylistic and thematic experiments deserve greater critical attention than they have hitherto received.» [imagem: Jean Cocteau e Ichikawa Kon, 1960]

*


São, de facto, muito poucos, de entre um tão extenso portfolio, os filmes de Ichikawa que obtiveram, à época da sua produção, alguma divulgação e distribuição fora do seu país de origem.
Entre estas destacam-se, antes de mais, os seus dois manifestos anti-guerra, "A Harpa da Birmânia" [ビルマの竪琴 — Biruma No Tategoto], de 1956, e "Fogos na Planície " [野火 — Nobi] de 1959.

A primeira destas duas marcantes obras, obteria uma nomeação, em 1957, para a atribuição do Óscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, e elevaria Ichikawa ao estatuto de 'grande promessa' entre os cineastas do seu tempo. O mesmo galardão fora já arrecadado, nessa década, por três seus contemporâneos : Kurosawa, em 1952, com "Rashômon" [羅生門], Teinosuke Kinugasa (衣笠貞之助), em 1955, com "Jigokumon" [地獄門] — que obtivera também, no ano anterior, a Palme d'Or no Festival de Cannes — e Hiroshi Inagaki, no ano seguinte, 1956, com "Musashi" [宮本武蔵]. O cinema parecia, então, servir de rosto ao emergente milagre Nipónico do pós-guerra.

"A Harpa da Birmânia" [ビルマの竪琴], 1956

A história do soldado do Exército Imperial, Mizushima, que após a derrota em 1945 é incumbido de persuadir um pelotão de insurrectos entrincheirados nas montanhas da Birmânia a depôr as armas e acatar os termos da rendição (tarefa que não consegue cumprir, face à obstinada decisão por parte dos seus camaradas em lutar até à morte...), preserva, desde o seu início, um tom delicado, quase improvável, desempenhando, o elemento musical que atravessa a película, um papel representativo quase autónomo, como se a música se convertesse, de per si, numa personagem distinta, etérea na sua invisibilidade, e, contudo, constante na sua presença, como projecção de um espírito que sustenta a vida diante do maior dos absurdos e da pior das provações.



"Nobi — 野火 — Fogos Na Planície", 1959

"A Harpa da Birmânia" parecia, de facto, oferecer a Ichikawa a oportunidade de se ver elevado ao pódio dos maiores do cinema Japonês do seu tempo.
Contudo, Ichikawa Kon era um homem todo ele feito de paradoxos e altercações permanentes, ora com os estúdios e produtoras, ora consigo mesmo.
"A minha vida no cinema começou pelo cinema de animação (...), chamávamos-lhe 'cartoons' na altura... agora já não lhe chamam isso, pois não? chamam-lhe 'cinema de animação', 'anime', já nem eu sei (...), mas, de facto eu continuo a sentir-me, acima de tudo o mais, um 'homem da animação'. A maior influência no meu trabalho é, sem dúvida, a de Walt Disney." tanto dizia Ichikawa em 2001, aos 86 anos de idade. Não seria a primeira vez que o afirmava e, quem sabe?, não terá sido a última.

Certo é que Ichikawa parecia ter por gozo predilecto essa imprevisibilidade que o caracterizava e, para perplexidade — e não raras vezes para consternação — de todos quantos com ele se relacionavam profissionalmente, raramente se detinha num género, ou num estilo identificável ou se apegava a um elemento sólido previamente ensaiado nesta ou naquela narrativa: os seus interesses do momento eram os dados com que jogava toda e qualquer partida.

Em 1958, Ichikawa assinaria aquela que, não sendo necessariamente a sua obra mais celebrada, é, ainda assim, muito provavelmente, aquela que maior expressão icónica se lhe atribui: "Enjô [炎上] — Incêndio", adaptação livre do 'best-seller' de Yukio Mishima, "O Templo Dourado", por seu turno inspirado no incidente do fogo posto que em Julho de 1950 consumiu e reduziu a escombros esse Kinkaku-Ji [金閣寺], o famosíssimo 'Templo Dourado' situado em Kyoto, que dá nome à obra citada.

O filme, no qual Kon Ichikawa optou por empreender várias liberalidades na respectiva concepção, contaria com a inestimável prestação no papel do protagonista, o perturbado Goichi (Mizoguchi, na novela original), dess'outro Ichikawa — Raizo Ichikawa VIII [八代目市川雷蔵] — à época, uma estrela em meteórica ascensão, e que em breve se tornaria numa das maiores lendas do grande ecrã Nipónico (conto, em breve, falar-vos mais a fundo, neste meu espaço, desse extraordinário e enigmático actor, descendente de uma das mais prestigiadas famílias da tradição do Kabuki no Japão... a seu tempo lá iremos...)

"Enjô [炎上] - Incêndio" (1958) — adaptação do best-seller de Mishima, "Kinkaku-Ji — O Templo Dourado"

E, não obstante "Enjô" trazer algumas variações de monta por comparação à novela original de Mishima — a qual, a par da sua notória complexidade, revolvendo em torno do quadro psíquico do protagonista, Mizoguchi, e das motivações deste para tamanho acto tresloucado, fôra, em todo o caso, precedida de uma meticulosa investigação por parte do aclamado autor de "Confissões de Uma Máscara" e "Sede de Amar", que, inclusive, visitara e entrevistara, no presídio, o próprio incendiário do Kinkaku-Ji, um monje padecente de perturbações mentais, Hayashi de seu nome —, Ichikawa segue no essencial o texto da obra literária que lhe dá vida, imprimindo-lhe, contudo, os laivos desse paradoxal 'realismo onírico', que, doravante, caracterizaria uma parte muito significativa da sua obra.


"Enjô" foi um enorme sucesso no Japão, à altura da sua estreia, e permanece, até aos nossos dias, uma formidável obra de culto, referenciada por inúmeros cineastas e estudiosos do cinema Nipónico como um marco de referência, não obstante as muitas vozes críticas que acusam esta adaptação de "O Templo Dourado" de apresentar os temas da novela original de Mishima — que, aliás, contribuíra activamente na feitura do filme — como que enclausurados numa moldura demasiado estreita e restritiva da sua rica e complexa dimensão filosófica.
Contudo, e até recentemente, "Enjô" parece ter resvalado, no que concerne ao público Ocidental, para um certo obscurantismo, quase inexplicável, tendo em linha de conta a imensa curiosidade e interesse que esta película é susceptível de inspirar.

Ao certo, sabemos duas coisas:
1. o filme pouca ou nenhuma divulgação colheu, à época, fora do Japão, tendo, a própria dinâmica de Ichikawa e da indústria cinematográfica Japonesa de então, tratado de 'arquivar' "Enjô" como mais uma obra que rendeu os seus expectáveis dividendos e que logo por ali ficou, para mais tarde recordar;
2. surpreendentemente — ou não — "Enjô" foi uma obra que, desde a sua génese e até à sua conclusão, não interessou por aí além ao próprio Ichikawa, e mesmo que se não possa dizer que terá sido um filme feito a contragosto, o mesmo diria, mais tarde, ter sido, antes, um projecto para o qual "o haviam persuadido a aceitar" ao cabo de muitos meses de insistência.

De facto, logo após a conclusão de "Enjô", Ichikawa lançar-se-ia, frenético, em duas novas produções: "Sayonara, Konnichiwa — さよなら、こんにちわ— Goodbye, Hello" e "Kagi — 鍵— The Key (também conhecido pelo título em Inglês "Odd Obsession"), esta última, uma ambiciosa adaptação do clássico de Tanizaki Jun'Ichiro do mesmo título.


"Kagi — 鍵 — The Key/Odd Obsesion", 1959, adapatação da novela homónima de Tanizaki.

Contudo o filme que, nesse ano de 1959, mais haveria de consumir o tempo, o empenho e a entrega de Kon Ichikawa, seria um dos que ainda hoje mais se eleva entre os seus trabalhos mais memoráveis e revistos e simultâneamente entre os mais permeáveis ao efeito da controvérsia.

"Nobi — 野火 — Fogos Na Planície", 1959.

"Nobi —野火 — Fires On The Plain/Fogos Na Planície", baseado na novela homónima da autoria de Shohei Ooka [大岡 昇平], de 1951 — perturbante relato dos últimos meses da Guerra, experiência que o próprio Ooka vivera, enquanto soldado deixado para trás, como tantos milhares de outros camaradas seus, aquando da capitulação do Exército Imperial nas Filipinas, no início de 1945 —, seria a segunda incursão de Ichikawa pela via sacra da Guerra do Pacífico, temática que, à época da estreia de "Nobi", 1959, ainda constituia território por demais arriscado para os que nele adentro se aventurassem.



[Imagem: fotograma de "Nobi — Fogos Na Planície" — 野火 —, 1959]

O argumento de "Nobi — Fogos Na Planície", a cargo da esposa e leal colaboradora de Ichikawa, Natto Wada — que redigiria a quase totalidade dos argumentos das suas obras até 1966 — segue a tortuosa luta pela sobrevivência de um pequeno destacamento de soldados do Exército Imperial, votados ao mais acabado abandono por parte do respectivo comando, e em particular o olhar despojado do um soldado, Tamura, e da respectiva descoberta do horror em toda a sua nudez e crueza, no inferno da Ilha de Leyte, nos primeiros meses de 1945.

O tom de "Nobi", por comparação com o seu antecessor no foro da guerra, "A Harpa da Birmânia" [ビルマの竪琴], de 1956, demarca-se, ab initio, e desde logo pela sua notória agressividade denunciante, expressa tanto no tratamento da fotografia, de tons baços, fúnebres, onde impera uma cruel e doentia ausência de luz natural, associada à crueza dos diálogos trucidados pelo absurdo de um vocabulário militar neurótico, intransigente e brutalizante, feito de urros e silêncios afligidos emparelhados no puxar de uma carroça grotesca de disciplina fanática e pura insanidade.


[Imagem: fotograma de "A Harpa da Birmânia" — ビルマの竪琴 —, 1956]

De facto, "Nobi" distanciava-se, consciente e com absoluto despudor, e em toda a sua dimensão, do discurso quase-condescendente de "A Harpa da Birmânia" e Ichikawa foi até aos limites do que, à época, era tido por aceitável no tratamento temático e visual do seu filme.

Sobretudo a invocação e o exibir explícito do alegado recurso ao canibalismo por parte dos militares ostracizados nas selvas das Filipinas, como expressão última da miséria e do horror absolutos a devorar os últimos resquícios de humanidade nos homens feitos fantasmas em trânsito num qualquer purgatório equatorial, onde os únicos sinais da vida, normal, diurna, ainda que tão incompreensivelmente distante e inacessível, são esses fogos na planície, acesos pelos camponeses nativos como prática de fertilização — e como tal de renovação da vida — dos campos e pastagens, visão simbólica da vida humana enquanto tal por oposição a essa desalmada bestialidade antropófaga que consome os cadavéricos combatentes, os mortos como os vivos, acabaria por ser, porventura, a opção mais controversa por parte de Wada e Ichikawa.

Chegado às salas Norte-Americanas, as críticas depreciativas não se fizeram esperar.
Vários críticos da imprensa de então limitar-se-iam a ablegar "Nobi" como um mero exercício inconsequente de crueldade gratuita, de um despiciendo gosto necrófilo.
A título de exemplo, lembramos a crítica repugnada de Bosley Crowther no New York Times, em 1963, que, sobre "Nobi", se pronunciava nestes termos: "Never have I seen a more grisly and physically repulsive film than 'Fires on the Plain.' (...) So purposefully putrid is it, so full of degradation and death... that I doubt if anyone can sit through it without becoming a little bit ill... That's how horrible it is."

Ainda assim, algumas publicações, à época, mostrar-se-iam mais benevolentes para com "Nobi". Caso da Variety, onde, em Abril de 1961, se lia: "["Nobi — Fires On The Plain"] goes much farther than the accepted war masterpieces in detailing for humanity in crisis", concluindo mais adiante "one of the most searing pacifistic comments on war yet made... it is a bone hard, forthright film. It is thus a difficult vehicle but one that should find its place."

Mercê da sua crueza gráfica e temática — antecipando, porventura, em mais de uma década a voracidade e o despudor de uma certa violência extrema com pretensões simbolizantes como a que encontraríamos posteriormente em algumas das obras mais memoráveis de um Sam Peckinpah, por exemplo (quem não se lembra de "The Wild Bunch — A Quadrilha Selvagem" [1969], "Straw Dogs — Cães de Palha" [1971], "Bring Me The Head Of Alfredo García" [1974] ou "Cross Of Iron" [1977] ?) —, nas décadas seguintes, e à semelhança de outras das suas obras mais notáveis, por variadíssimas razões, "Nobi" tenderia a cair num certo esquecimento comum, vindo a ser redescoberto só mais recentemente por intermédio de entusiastas da obra de Ichikawa, como James Quandt, e também por via do esmerado trabalho editorial de uma Janus Films e da sua Criterion Colection, com respeito à reedição videográfica desta e de outras películas de superior interesse de entre o espólio de Ichikawa Kon.

Irredutível, Ichikawa Kon dirigiria nove novos filmes nos seis anos seguintes, dos quais se destacam "An Actor's Revenge" de 1963 — remake do filme homónimo de 1935 da autoria de Kazuo Hasegawa — e "Alone On The Pacific" ["Taiheiyo Hitoribochi" — 太平洋ひとりぼっち] também de 1963, obra semi-documental baseada na extraordinária odisseia de Kenichi Horie, levada a cabo no ano anterior.

Mas seria em 1965 que Ichikawa teria a sua tão sofrida consagração como figura incontornável do cinema do século XX, com a realização do seu único verdadeiro documentário integral — um que ficaria para sempre como um marco histórico em várias vertentes.

"Tokyo Olympiad", 1965 — a Maratona — ...hipnótico, obrigatório ver até ao fim...
"Tokyo Olympiad", ambiciosa cobertura dos Jogos Olímpicos de Tokyo de 1964 e hoje considerado como um dos melhores cine-documentários de sempre, foi, desde a sua génese, um custoso braço-de-ferro, opondo o cineasta aos seus sponsors de então, em particular o Comitée Olímpico Japonês, à época co-detentor dos direitos de exibição e distribuição do filme, que forçaria o corte da película, dos seus cerca de 170 minutos na versão original para uns comedidos 93 minutos projectáveis.


[imagem: o outro 'Eixo' Berlim-Tokyo — Ichikawa Kon e Leni Riefenstahl, 1964]
Ichikawa, que desde o ínicio se propusera realizar um filme que tivesse por substância a natureza intimista e individualizada das prestações dos atletas, focando, sublimando e interpretando, com singular mestria, inúmeros detalhes na força humana do desempenho atlético, o sorrir da confiança e as lágrimas do fracasso entre expressões de entrega ao esforço competitivo, manifestações de júbilo e desespero, da dimensão da superação do si-mesmo em todo o seu esplendor à cedência exasperada à dissipação das forças do corpo e à exaustão, em "Tokyo Olympiad" ver-se-ia excedido em tudo quanto pudesse previamente ter prometido. O Comitée Olímpico Japonês, por seu turno, tendo 'encomendado' o que se pretendia que fôsse, na sua essência, um boletim propagandístico, confinado à tarefa funcional de catalogar êxitos de organização e os dias de glória daqueles que seriam os primeiros Jogos Olímpicos a ter lugar no continente asiático, e expressão última da resurreição do Japão menos de vinte anos volvidos sobre o fim da Guerra, não poderia ter-se mostrado mais insatisfeito e inflexível do que os termos que acabaria por impôr em sede de pós-produção.

Uma produção de proporções megalómanas à época, dotada de recursos como nem Leni Riefenstahl colhera sob os auspícios de Goebbels e do III Reich, tal como o crítico Jacques Demeure fez notar, "Tokyo Olympiad" parecia ter nascido sob o "signo do gigantismo": 164 cameramen munidos de mais de uma centena de câmeras de filmar, incluindo cinco câmeras Techniscope especialmente trazidas de Itália para esta empreitada, equipadas com mais de 250 lentes diferentes, 57 técnicos de som, mais de cinquenta mil metros de fita gravada, captando minuciosamente cada evento dos jogos, em toda a sua extensão, em cinemascope e stereo , uma capacidade empreendedora e uma força inventiva como só anos mais tarde alguém como Stanley Kubrick teria acesso.

"Tokyo Olympiad" — Gymnastics — 1964/65
Contudo, como James Quandt tão bem nos esclarece (e uma vez mais permito-me a transcrição de um excerto da obra de referência no respectivo Inglês original): "Despite the massive forces, equipment, and money expended upon the project, the result was anything but the vast, inspiring spectacle anticipated by the Olympic officials. From seventy hours of footage, Ichikawa shaped an idiosyncratic, formally innovative and surprisingly intimate film which he positioned in the artistic tradition of Leni Riefenstahl's "Olympia" rather than in the conventional genre of other Olympics films and sports documentaries. Attacked from both sides of the political spectrum, disliked by the Emperor, and rejected by the Olympics organizers, who intended to have their own film made from his footage, and, failing at that, demanded that Ichikawa re-edit the film, "Tokyo Olympiad" was released in many different versions after the rights were sold off somewhat indiscriminately. (An American company promoted a half-hour version to civic and business groups, which focused exclusively on U.S. gold medal victories.) The film became an international phenomenon after being acclaimed at the 1965 Cannes Film Festival; and at home, despite the saturation coverage of the Olympics by Japanese television (a new but ubiquitous medium in the country), "Tokyo Olympiad", in a version slightly shorter — 154 minutes — than the one originally planned, quickly became the highest grossing film ever released in Japan."

Mormente as inúmeras vissicitudes sofridas após a sua conclusão, "Tokyo Olympiad" permanece algo inacessível ao grande público na actualidade. A Criterion Collection lançou há alguns anos uma edição em DVD contendo a versão integral desta obra-prima, que entretanto quase desapareceu por completo do mercado. Em todo o caso, recomendamo-la vivamente.

*
No ano seguinte, 1966, também a carreira e a direcção da obra de Kon Ichikawa sofreriam nova mudança de rumo, com o afastamento voluntário de sua esposa, Natto Wada, da respectiva responsabilidade como primeira argumentista dos seus filmes, permanecendo, o grosso dos seus títulos — mais uma dezena — realizados nos dez anos seguintes, virtualmente incógnitos onde quer que se vá fora do Japão.

Ichikawa Kon regressaria, em fôrça, ao circuito internacional em 1976, com outra das suas obras elevada posteriormente à categoria de filme de culto.

"O Clã Inugami" [犬神家の一族 — Inugami-Ke No Ichi'zoku] — 1976 — trailer.
"O Clã Inugami" [犬神家の一族 — Inugami-Ke No Ichi'zoku], de 1976, é, provavelmente, o último dos grandes originais de Ichikawa.
Tive o previlégio de o apreciar em casa, há alguns meses (daí ser, este, mais um dos meus "Capítulos Omissos"), e assevero-vos de que se trata, sem dúvida alguma, de um dos seus melhores filmes.
"O Clã Inugami" começa logo por aguçar a curiosidade dos incautos, por via do seu sugestivo título — o nome Inugami [犬神] significa, literalmente, "Espírito do Cão" ou "Espírito dos Cães", podendo, também, ser interpretado por "Deus-Cão" ou "Deuses-Cães" —, adicionando-lhe a sensual e insinuante banda-sonora original, a cargo de Ohno Yuji, que, não obstante ser um quase-plágio de seja o que fôr, da mesma época, que recordemos da autoria de um John Barry (quem se lembra desses magníficos temas de "The Persuaders" ou "The Adventurer" [esquecei o impensável canastrão desta série das calendas gregas...], ou de "Follow, Follow/The Public Eye" , "Wednesday's Child/The Quiller Memorandum" ou "The Ipcress File"...), não deixa de ser um elemento de refinada sedução neste filme.

Sumariamente: no imediato pós-guerra, um abastado negociante das províncias do Norte, Sahei Inugami, antes de falecer, submete a herança do seu vasto património à verificação de um intrincado complexo de bizarras estipulações testamentárias, cabendo a cada uma das partes suas sucessíveis providenciar pela satisfação das ditas condições para poder aceder à herança. Sucede que, ao morrer, Sahei deixa, atrás de si, três filhas, três amantes e as respectivas famílias, séquito em redor do qual uma série de sinistros homicídios ritualisticamente encenados vão ocorrendo, à medida que o tempo urge para que cada um dos potenciais herdeiros cumpra com o que lhe foi incumbido para que possa reclamar o seu quinhão...
Acresce que, do obscuro passado de Sahei, uma história que envolve um monge que o salvou da miséria em juventude, ficou algures por contar...

"O Clã Inugami" é um filme que poderá padecer de um sem-número de falhas, mas que nem por um segundo que seja, faz soltar um bocejo de aborrecimento.
A adaptação deste famoso policial da autoria de Seichi Yokomizo, não seria o último grande êxito de Kon Ichikawa, mas é talvez o último dos seus filmes a ter um alcance expressivo além-Japão e a passar, categoricamente, o teste do tempo. Não sem surpresa, uma nova versão deste clássico seria precisamente a última obra dirigida por si, em 2006.


[imagem: "O Clã Inugami" — versão de 2006, o último filme de Kon Ichikawa]

Nos 30 anos que medeariam entre as duas versões de "O Clã Inugami" , mais de vinte novos filmes teriam a sua assinatura, sendo a sua ambiciosa adaptação de "Sasame Yuki [細雪] — The Makioka Sisters / As Irmãs Makioka", a obra desse período, porventura, ainda hoje melhor recordada e regularmente revisitada pelo público Japonês.

Os anos finais da carreira de Ichikawa não sendo necessariamente um pálido reflexo da glória por si conquistada entre o início da década de 50 e meados dos anos 60, em todo o caso, constituem um segmento da sua vida e obra hoje relegado para o plano das segundas escolhas. Não creio que assim seja porque Ichikawa tivesse abdicado do seu génio ou daquilo que mais o impelia a querer filmar e filmar mais se houvesse perdido algures no tempo. Kon Ichikawa, à semelhança de um Peckinpah, depois de décadas de agruras e quezílias com estúdios, produtoras e circuitos de financiamento, não quiz nunca deixar de filmar: pur'e simplesmente, como o próprio o descrevia nas suas próprias palavras "deixei seguir o curso das coisas..."

Já lá vão quatro anos que largou a câmera e dois anos que largou o Mundo.
É tempo de o (re)descobrir.



Yoi shumatsu wo! Bom fim de semana.



[NOTA FINAL: já ao cair do pano, um dos clips do YouTube por mim seleccionados para este artigo — o excerto de "Enjô" — deixou subitamente de estar disponível nesse grande bazar da vídeoliberdade, o que é de lamentar, mas como bem entendereis é algo que está par'além do alcance do meu protesto. Em todo o caso, fica prometido que assim que seja possível resgatar o dito clip, assim o farei, em homenagem a todos quantos tiveram a bondade e o interesse em ler este infindável tratado. A todos Um Grande Bem-Haja!]

3 comentários:

  1. Passei pela Casa Improvável e deliciei-me com o Akira Kurosawa que é um dos meus realizadores eleitos. De lá viajei até ao Japão e eis-me aqui.
    Este seu artigo, muito completo, decidi lê-lo por etapas, para ir pensando. Conheço o cinema de Mishima e de Kurosawa mas dos outros que focou não.
    Sou apaixonada pelo Oriente: Índia, China e Japão. Deste último, particularmente. Nunca estive no Japão. Bebo toda a sua cultura através do cinema e da leitura de viagens, da poesia,da literatura...
    Este seu post deu-me a conhecer nomes que ainda não me tinham chegado.
    A delicadeza, o ritual e o cerimonial japonês são do meu agrado. Julgo que hoje as tradições estão mais adormecidas o que é uma pena.
    Gostaria de lhe perguntar porque é que escolheu como nome: o último naban jin? A arte nanban está a morrer?
    Comecei por dizer que gosto da arte e culturas orientais, em particular da japonesa, não sei se a minha percepção é idílica.
    O que é hoje o Japão para um português?
    Na sociedade actual continuam os códigos de honra transmitidos por Kurosawa e Mishima?
    Ou é tudo uma sombra e um sonho nostálgico?
    Desculpe esta forma de me apresentar. Bom sol!

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  2. Olá Ana.
    Antes de mais, muitíssimo obrigado pela sua visita.

    Procurando responder às suas questões de forma tão sucinta quanto possível, aqui vai.

    Começando pelo nome deste espaço — "The Last Nan Ban Jin" —, começa certamente por ser um aproveitamento jocoso do título do famoso filme de Edward Zwick "The Last Samurai", modificado pela alusão (sub-entendida) ao facto de eu ser um dos raríssimos — senão mesmo o único — cidadãos portugueses a residir em Kyushu, Sudoeste do Japão, 2ª das grandes "Ilhas-Mãe", e lugar onde os Portugueses entre 1543 e 1637 tiveram as últimas praças do seu vasto império marítimo. Aqui, esses homens, que à sua chegada causaram grande perplexidade, ficaram conhecidos como "Nan Ban Jin", que significa, literalmente, "Bárbaros do Sul", expressão que passaria posteriormente a abranger outros Europeus entretanto reunidos à presença Portuguesa (designadamente os Espanhóis), mas que se mantém irreversivelmente como uma alusão firme a Portugal e à sua remota influência no Japão — e ainda que dotada de uma carga algo pejorativa no seu significado, guarda, a meu ver, um delicioso sabor anedótico (daí a minha escolha).
    De facto, a página gloriosa (e trágica) da presença Nan Ban no Japão, foi largamente celebrada pela Arte que lhe toma de empréstimo o nome, e que a Ana tão bem refere. Não diria que se trata de um estilo "morto", mas, vejamos, trata-se de um fenómeno artístico historicamente tão remoto quanto o renascentismo de DaVinci ou Michelangelo e Rafael, pelo que, hoje, é sobretudo algo para ver em museus e livros e estudos da especialidade, e não algo que seja propriamente "cultivado" por quaisquer artistas plásticos ou outros do nossso tempo.

    Dizer-lhe o que é hoje o Japão para um Português, é algo a que, sinceramente, não lhe posso responder.
    Teria a Ana que fazer a mesma pergunta a mais umas boas centenas de Portugueses que cá vivem ainda que algo distantes de mim na sua larga maioria — eu estou em Fukuoka/Hakata, a cerca de 500 km de Osaka e 800 km de Tokyo.
    Para mim significa muito, mesmo muito, pois que desde miúdo que trago este Grande país cravado no coração e quiz o destino trazer-me, por estranhas lides, até cá.

    O Japão, na minha visão pessoal, é um país de vários rostos e com personalidades múltiplas — um pouco como certas personagens do teatro Noh e as suas estranhas máscaras —, umas, encantadoras na sua magnificência, outras enigmáticas, indecifráveis, outras francamente detestáveis, e não há que disso fazer segredo.
    De facto o Japão tradicionalista, "quase-feudal", esfíngico na sua elegância e exigência aristocráticas, está vivo, de saúde e recomenda-se, ainda que raras vezes seja aquilo que alguns "clichés" disseminados no ocidente dele pretendam fazer.
    E, lá está: o Tal "Japão d'Outrora" que tantos temem que se esteja a dissipar, e que na verdade, como lhe digo, está vivo, convive paredes meias com ess'outro "Japão Blade Runner", como eu insisto em chamar-lhe, que tem também o seu carisma e o seu quê de fascinante e improvável.

    Conhecer o Japão é uma tarefa que pode levar muitos, muitos anos a completar, daí ser para mim um gosto manter este "Diário de Bordo" onde vou dando o mais que posso a conhecer a todos quantos, como a Ana, se interessam pelo que vai deste Lado Do Mundo.

    Uma vez mais, agradeço-lhe do coração a visita, o interesse e simpatia do comentário aqui deixado.
    Volte Sempre,

    NBJ

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  3. Muito obrigada pela sua resposta ao comentário. Deliciosa aula de história. Recordou-me o que está esquecido. Claro a arte nanban tem o seu tempo. Congratula-me saber que ainda se mantem o Japão de outrora. A beleza daquela cultura, talvez, aos nossos olhos ocidentais estranho, mas belíssimo no seu conteúdo.
    O néon da nova era não é para mim tão atractivo. Um dia irei ao Japão.
    Vi e maravilhei-me com "O último Samurai", afinal conhecia outro realizador...
    De vez em quando se, não se importar venho visitá-lo para aprender e saborear a cultura japonesa, vista por um ocidental.
    Talvez encontre uma fotogarfia da ilha onde vive.
    Muito agradecida,(uma vénia)
    Ana

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