quarta-feira, 20 de maio de 2009

Silêncio, Scorcese, Shusaku Endo: o Céu e (ou) o Inferno para 2010...


Os três actores já dados como certos no aguardado drama histórico de Martin Scorcese,"Silence", com estreia prevista para 2010: Benicio Del Toro, Daniel Day-Lewis e Gael Carcia Bernal.












Já é dado como certo: 
Martin Scorcese avança mesmo este ano com a produção da sua tão aguardada quanto hesitada quanto adiada versão  de "Silence"  (Chinmoku - 沈黙 - no original), ou "Silêncio" para os mais empedernidos vigilantes da lusofonia. 

Obra-prima de Shusaku Endo, publicada em 1966, "Silêncioterá para mim, certamente um apêlo muito particular; para vós e para um certo público afectivamente atado quer a Portugal quer ao Japão, esta será, porventura, a (tal) obra de eleição - e isto, é ponto assente, quer se partilhe ou não dos sentimentos e preocupações de natureza religiosa que avultam pela obra adentro.

Ora aqui fica um ligeiro aperitivo a aguçar-vos o apetite:

O que terá levado um homem de inabalável fé e inestimável serviço à mesma, a, de um dia para o outro, renunciar-lhe?

Ano de 1614 - após quase seis décadas de acção missionária encabeçada pela missão Jesuíta em Nagasaki, a Cristandade no Japão sofre o pior dos revéses possíveis: o Shogunato dos Tokugawa, recentemente empossado de autoridade absoluta no país, e desta feita empenhado em banir toda e qualquer influência nefasta dos  'bárbaros do Sul'  no Japão, decreta a proibição total do Cristianismo e enceta uma brutal e implacável purga dos fiéis de Cristo, expulsando clérigos - na sua maioria Portugueses e Espanhóis - e seus auxiliares e submtendo crentes e outros suspeitos de o serem a inenarráveis torturas destinadas a levarem todo e qualquer convertido à apostasia

Face à encarniçada bestialidade dos algozes do Shogun, a maioria dos supliciados cedo se verga aos ditames da nova lei...

Mas há ainda os que, no epicentro de tamanha voragem, impassíveis face à razia, insistem em viver na Fé e dela fazer sua causa e bandeira - entre estes um certo prelado dos Jesuítas Portugueses, Cristóvão Ferreira de seu nome, que secretamente permanece por longos anos mais em plena Kyushu, baluarte do Catolicismo Romano em terras do Sol Nascente, recusando peremptoriamente abandonar o seu rebanho e reconhecendo ser esta a mais aflitiva das horas.


Chegádos a 1632, eis quando as notícias trazidas a Roma anunciam o inimaginável para espanto geral e até dos mais cínicos: capturado e submetido à tortura, Ferreira apostatou... sem sequer hesitar!...

De entre os mais incrédulos, dois dos seus discípulos de outrora, Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe, decidem empreender a viagem de todos os riscos, a fim de desvendarem a verdade sobre a apostasia de Ferreira...

Este é, sem sombra de dúvida, para mim, território perdilecto para o mesmo Scorcese de"Mean Streets" (1973), "Taxi Driver" (1976) e d'"A Última Tentação De Cristo" (1988). 
 
Para além do realizador em comum, que têm estes filmes de tão próximo entre si e com o romance de Endo? perguntar-me-ão. 

Resposta: os mesmíssimos temas sempre estiveram lá - a Homem enquanto recptáculo de sofrimento, exposto à dúvida, à falha moral, à traição,  à queda em desgraça, e, ainda assim, sempre movido por uma misteriosa necessidade de redenção.

Pela alta referência que sempre tive em Scorcese, mas também pelas muitas decepções a que me habituei da parte dele nos últimos quinze ou vinte anos, tanto podemos esperar - de"Silence" - uma obra digna de standing ovation como o mais perfeito logro.

O projecto para "Silence" ao que se sabe é antigo - consta que Scorcese vem sonhando em fazer este filme vai para mais de dez anos -  e   por efeito de contratempos vários, outros projectos e solicitações, terá ficado na gaveta este tempo todo à espera da altura certa.
Um elenco de primeira água também parece já ter: Daniel Day-Lewis e Benicio Del Toro estão já dados por garantidos e Gael Garcia Bernal também consta da casta dos eleitos para os papéis 'ocidentais'. Resta saber a quem ficarão destinados os papéis 'nipónicos'.

De Scorcese espera-se sempre muito - dele espero eu sempre muito.
Para este "Silêncio" a bitola está já muito alta.



8 comentários:

  1. Desconhecia essa obra, bem como o interesse por parte de Scorcese em adaptá-la a cinema. :-o
    É sem dúvida um tema bastante interessante. Aliás, gosto muito de temáticas históricas.
    O casting é fantástico. Oxalá que a rodagem se concretize em breve. :)
    Tanto quanto sei, o catolicismo no Japão moderno nunca teve grande expressão...

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  2. Car Maldonado:

    De facto nunca chegou a ter uma expressão desafiante face ao Budismo e ao Shintoímo autoctones, mas no Século XVI, e após a vinda de Francisco Xavier em 1549, no seu auge a comunidade Católica no Japão - centrada sobretudo em redor da colónia Portuguesa de Nagasaki - chegou a contar com mais de 300.000 adeptos - uma das mais bem sucedidas acções envangelizadoras de sempre. O próprio Francisco Xavier chegou a escrever aos respectivos superiores em Goa e Macau que "jamais encontraremos uma gente tão sensível e grata por receber a boa nova, como esta raça do Japão..."

    Depois da grande perseguição dos Tokugawa - sobretudo a partir de 1629, na regência do Shogun Iemitsu - e mais tarde, com a Rebelião de Shimabara, por volta de 1636-1637, na qual uma parte muito significtaiva da população camponesa do Norte de Kyushu, esgotada pelo peso de tributos excessivos, se revoltou de forma particularmente bem organizada (levando as autoridades a assumirem que um tal nível de organização só poderia ter sido proporcionado com auxílio do exterior, ou seja, de Portugal...) tomou o Castelo de Shimabara (próximo de Nagasaki), obrigando o Bakufu (governo do Shogun) a enviar um exército de 125.000 homens para esmagar o levantamento -, foi nessa altura que o Japão entrou no chamado "Sakoku" - Período do País Fechado (1637-1860) - tendo todos os Europeus no Japão sido sumariamente expulsos, e com eles todos os sinais do antes ascendente credo; excepção feita aos Holandeses (que não misturavam negócios com religião), que ficaram ainda assim confinados a uma minúscula ilha artificial na baía de Nagasaki chamada Dejima - ironicamente a dita Dejima tinha sido previamente edificada para albergar a colónia Portuguesa, a partir do momento em que a desconfiança das autoridades no que respeitava à religião Católica se instalou de vez...

    Mas o mais interessante, é que mesmo sem padres, nem igrejas, nem bíblias, a fé cristã ainda assim sobreviveu em Kyushu, designadamente através dos chamados "Kakure" (os "Escondidos"), uma das mais famosas comunidades cripto-cristãs que conhecemos da História, os tais que adoravam o "Deus-do-Armário" (assim chamado, por ser hábito dos "Kakure" conservarem uma imagem de Cristo ou da Virgem Maria - no mais das vezes herdada dos antepassados contemporâneos das missões jesuítas - dentro de relicários budistas - os tais "armários", por modo a ocultarem a sua fé, evitando assim serem denunciados às autoridades que mantinham uma política de repressão implacável contra todos os suspeitos de simpatia para com o Cristianismo.
    Os mesmos "Kakure Kirishitan" surpreendentemente também sucederam em transmitir oralmente de geração em geração e por mais de 250 anos, as orações em Latim e em Português aprendidas no Sec. XVI, muitas vezes limitando-se a repetir canções e ladainhas cujo significado os próprios já nem sequer entendiam de facto...

    Este é outro tema que, como podes constatar, me fascina, e apesar de eu próprio não ser crente, por isso hei-de ver se arranjo algum tempo extra para escrever um artigo propriamente dito sobre este assunto.

    Obrigado pelo interesse. Volta sempre.

    NBJ.

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  3. post e tema muitíssimo interessantes. Aguçaste o meu apetite pelo filme e pelo livro.

    Por coincidência ainda há dias estava a falar com o meu pai sobre a expulsão dos Jesuítas do Japão. A forma como terminavam as últimas horas era de uma crueldade atroz.

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  4. Pois é Pulha,
    e agora vais ter o filme versão Marty.

    O livro é mesmo espantoso - vai por mim, mesmo para os que, como eu, vivem de costas voltadas para a Igreja - e aconselho-to vivamente.

    Sinceramente, não sei se existe tradução em Português (suspeito que sim), mas há várias edições em Inglês, pelo menos, e é um livro que se lê com muito prazer e uma certa facilidade, isto é a bom ritmo - não é minimamente verborreico.

    Obrigado pela visita.

    NBJ

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  5. Caro amigo:
    Por acaso tenho uma cópia em inglês (sou grande fã do Endo) e quando li outro dia no jornal que o Scorcese ia filmar o Silêncio, fiquei maravilhado com a ideia. É um livro espectacular e, tal como muito bem dizes, material extremamente apropriado para um realizador com o nosso Marty.
    Só por curiosidade, já leste "o samurai" do mesmo autor? É o único dele que consegui encontrar traduzido em português.
    Bom post, bom post.
    Abraço

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  6. Caro Joaquim:

    Muito obrigado pela visita.
    Tenho o "Samurai" - que aliás adquiri aqui há bem pouco tempo - mas ainda não tive a chance de lhe pegar. Mas sei que os eventos narrados são baseados em factos verídicos - a história da embaixada itinerária de Hasekura Tsunenaga até Roma.

    E já agora: sabias que há uma aldeia nas imediações de Sevilha, Espanha, chamada Coría Del Rio, onde reside uma larga família de apelido Japón, cujos membros são de facto descendentes de uns quantos Samurais que acompanhavam Hasekura nessa viajem e por lá ficaram? E esta, hein?

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  7. Grande história, grande elenco.

    Can't wait.

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  8. A ver vamos, António, a ver vamos.

    O Marty é demasiado imprevisível, desde há uns tempos para cá - odiei "O Aviador"...

    Mas lá que promete, promete.

    Obrigado pela visita, Volta sempre.

    NBJ.

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