A caminho do Nordeste e em força, o Songda chega às Ilhas-Mãe amanhã, inesperado e fora de estação.
É certo que a Tsuyu [梅雨 — Estação das Chuvas/Monção] abriu oficialmente ontem, e com ela vêm, via de regra, fortes rajadas de chuva e ventania de Sul. Porém, não façamos confusões: a época da 'caça ao tufão' no Pacífico Norte situa-se, por norma, nas semanas compreendidas entre o final de Agosto e meio de Setembro, motivo pelo qual o Songda, chegado de surpresa das Filipinas esta semana, causa particular estranheza aos que por cá estão.
Para o vosso leal NanBan, a dizer a verdade, a preocupação do momento prende-se sobretudo com a perspectiva de já para a semana vos prestar uma visita — sim, aí mesmo, em abençoado solo pátrio! —, algo que implica voar... eventualmente em condições menos favoráveis que o que seria desejável...
Porém, não temeis: a boa estrela desta ponta-mais-ocidental do Japão — velha baía de Hakata — parece não ter esquecido este vosso peregrino, e o certo é que todos os serviços meteorológicos consultados até ao momento, apontam a franja noroeste de Kyūshū como a região menos exposta à voragem da tempestade, atingindo esta o pico da respectiva dispersão a 1 de Junho — ainda antes da descolagem deste vosso amigo e a caminho da ditosa Pátria, via North by Northwest, Sibéria branca adentro, non-stop até à Velha Europa.
O certo é que, por estes dias, entre as preocupações dos mais pessimistas, não pesará tanto o montante dos eventuais estragos a assinalar pela passagem do Tufão Songda, mas sobretudo com a previsão de um dano colateral mais sinistro: a eventual sobre-dispersão da radioactividade concentrada na região de Tōhoku e em particular sobre Fukushima e na sequência do Grande Cataclismo de 11.03. Há até quem já tenha feito uma antecipação esquemática e correspondente motion picture do anunciado processo de alastramento desse grande e insinuante mal invisível à solta no firmamento...
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Em qualquer recurso — e como podeis apreciar da imagem —, Kyūshū Norte sai desta contenda aparentemente, e uma vez mais, intocada, ilesa, imaculada...
...quando a intenção, ontem, não era tanto essa de ir lá, mas antes o pagar de uma promessa, e assim partimos em nova peregrinação.
Porém, uma vez em Kumamoto (熊本市) não há como evitar ir lá.
O lugar é simplesmente maior que nós; mais poderoso, apelativo, carismático e insinuante que tudo o mais que possamos eleger num amplo raio de acção, nesta Kyushu de todas as lendas e narrativas. Um portento...
E depois de uma breve visita à galeria privada da Família Shimada, outro must para quem por cá passe, e ainda que a tarde avançasse a passos largos e contra os ponteiros do relógio, não haveria como eximir-nos a lá irmos: o imponente castelo parece dotado de uma força magnética irresistível que a ele atrai tudo e todos.
E, de facto, pelas cinco da tarde já não era hora de subir a sua altiva torre-mestra de seis andares e apreciar, a par da deslumbrante vista sobre a cidade, a vasta colecção de armas, artefactos antigos muitos, mapas, planos de batalha e extensa documentação histórica exposta ao público e que o seu interior orgulhosamente alberga. Porém, houve ainda tempo de uma breve visita ao esplendoroso Honmaru Goten (本丸御殿 — Palácio de Honmaru), antiga residência dos Senhores de Higo, primeiro com Katō Kiyomasa (加藤清政) — fervoroso adepto do Budismo Nichiren e um dos mais ferozes inimigos dos NanBan e da Cristandade em terras de Kyushu —, e após 1632 do Clã de Hosokawa (細川氏 — Hosokawa-shi), ramo do Clã de Minamoto (源氏 — Minamoto-Shi), casa aristocrática emanada da descendência do Imperador Seiwa (清和天皇 — Seiwa Ten'Ō [850–880]) e dos Shogun de Ashikaga.
E devo dizer que, ao entrar aqui, estranhei: é que quando aqui vim pela primeira vez há cinco anos, o Honmaru Gotenainda cá não estava — melhor dizendo, estava em processo de restauro — tendo reaberto ao público em 2008 —, pelo que não me apercebi, na altura, sequer da sua existência, motivo de sobra para ter valido a pena voltar ontem a Kumamoto.
E este é, de facto, um lugar para visitar a um ritmo pausado e sem trazer relógio de pulso, para absorver, para 'inalar' e do qual reter detalhes muitos. São mil e uma histórias a contar.
Parti com muita vontade de cá voltar com mais tempo — felizmente não fica longe.
Uma visita que nunca cansa.
'Ka'Mon' (家紋 — 'brasões')
dos Clãs de Katō e Hosokawa
O Kyūdō, antiga arte de tiro com arco japonês, é, provavelmente, logo a seguir ao Kendo, a segunda Budō [武道], ou Arte de Armas/Arte Marcial, com maior implementação e vitalidade no Japão contemporâneo — não incluindo nesta avaliação Artes Marciais ou combativas, como o Karate, em todo o caso, meritórias da nossa maior reverência — que não incluem o treino com armas e respectivo exercício, directamente derivadas das antigas práticas da classe militar do Japão feudal: a dos Bushi [武士] ou Samurai [侍].
É comum, entre os visitantes menos familiarizados com o Japão, sua cultura, história e respectivos legados, ser-se surpreendido numa viagem de estreia a uma qualquer grande cidade deste país, ora por largos, amplos grupos de pessoas de todas as classes etárias, ora por pedestres isolados, circulando pelas ruas de Tokyo, Osaka, Kyoto ou Hakata, empunhando os longos Yūmi (弓) ou Daikyū (大弓), ora em trajes comuns, ora orgulhosa e uniformemente envergando as suas hakama e kyudogi, com a solenidade e pose próprias dos atributos reconhecidos à antiga classe castrense de Yamato e como se em pleno Período Edo estivéssemos, não fosse esta uma arte ainda hoje levada muito a sério e não somente pelos seus praticantes, mas bem assim, e em geral, por toda a sociedade nipónica dos nossos dias, que insiste em preserva-la como opção de excelência enquanto actividade extra-curricular no seu sistema educativo.
Aos que, de entre vós, calhe a chance de passar por Kyoto por altura da primeira semana de Maio, a possibilidade de um tal, fortuito, encontro, com entusiastas desta ancestral Arte de Armas, tão ao gosto do País dos Kami, mais que quadriplica: virtude da tradição do Kyoto Enbu Taikai nessa semana, ele há Kyūdōka por toda a parte e para surpresa dos muitos turistas estrangeiros presentes, por estes dias, à antiga capital do Império, por distintíssimos motivos e interesses e desconhecendo a natureza, escala e dimensão desta nobre e antiga disciplina.
À semelhança do que observamos em presença de outras Budō [武道] contemporâneas — e tomando aqui por referência maior a 'arte-irmã' do Kendo, oIaido[居合道] —, no que concerne ao Kyūdo, constatamos pesar, sobre o mesmo, um nível de exigência extremo no que respeita à dimensão estético-formal da respectiva prática — posturas rígidas, alternadas por movimentos meticulosamente cadenciados, via de regra lentos e meditativos, e exibindo um rigor incorrupto no que se refere ao domínio de um certo estado reflexivo marcado por uma exímia e inquebrável concentração mental.
Uma certa corrente interpretativa desta realidade aponta como raiz histórica da mesma, o facto de que, pela segunda metade do Período Edo (Século XVIII da nossa era), perante um Japão plenamente pacificado e onde, por consequência, as artes de armas tendiam a perder a sua importância de outros tempos, a classe guerreira dominante viu-se perante a necessidade de recorrer a expedientes tão rebuscados quanto diversos, com vista a justificar a respectiva hegemonia social sobre a restante população (os Samurai representavam tão-só cerca de 2,5 % da população do Japão de então) e entre estes pontificou um crescendo dessa dita exigência estético-cerimonial nas artes da nobreza, que passou a identificar nessa demanda de rigor para-protocular, o elemento erudito, refinado, aristocrático, próprio de um certo ascendente de classe que teria por fim imprimir uma forte e clara destrinça entre os que mandavam e os que obedeciam: as Budō e o seu domínio, passavam assim da sua natureza originária de disciplinas combativas puras, a mecanismo essenciais de afirmação social.
E ainda que esta interpretação da natureza socio-cultural do Kyūdō, bem assim como do Iaido e outras artes de armas vivas e presentes no Japão hodierno, possua a sua quota de atendibilidade de um ponto de vista histórico, tal não obsta a que nestas disciplinas indentifiquemos uma mais persistente e determinante influência do Budismo, e em particular do Zen, enquanto força cultural e filosófica dominante no Japão de ontem como de hoje, e peça fundamental para a compreensão da psique nacional Nipónica.