quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Um Ordálio De Rosas ou O Homem Que Queria Todo Ele Ser Corpo...






           "Perante a câmera de Hosoe, cedo percebi que o meu espírito e suas preocupações se haviam tornado absolutamente redundantes.  Era uma experiência tremenda, um realizar de algo que sonhara havia muito tempo. Hosoe limitar-se-ia a explorar  por intermédio da sua câmera — de um modo em tudo idêntico ao processo pelo qual o escritor recorre às palavras e o compositor aos sons — as múltiplas combinações pelas quais os objectos a fotografar se poderiam dispor, e bem assim as luzes e sombras que possibilitavam essas mesmas combinações. Para ele, em suma, os objectos correspondem a palavras e sons."


MISHIMA YUKIO [三島由紀夫] do prefácio de "Barakei" [薔薇刑], 1963.    




            Sim. 
         É um dos mais célebres exercícios de puro narcisismo convertido em disputado objecto de um certo coleccionismo obsessivo. 
      Extravagância exibicionista, genial e escrupulosamente planeada e elevada à suprema categoria de obra-prima de uma certa Arte da Era da Reprodutibilidade Técnica e subversão quase-perfeita daquilo que Walter Benjamin a esse respeito teorizava.
       Sem outra pretensão que não fosse o imortalizar de uma imagem idealizada de si mesmo enquanto estátua viva que se esculpiu esmerada e minuciosamente a si mesma, e que exultava agora, triunfante e pueril, na inefável alegria de poder enfim, reclamar do Mundo o olhar atónito e a auto-indulgência de uma existência superiormente física, vocacionada, antes que tudo o mais, para a via da acção, um corpo feito de sol e aço e nervos à flôr da pele, essa vitalidade corpórea que tanto cobiçara — revanche de uma infância e adolescência agrilhoadas à introversão própria de uma criança sobre-protegida, a salvo das luzes ofuscantes deste Mundo... 





         A história de "Barakei [薔薇刑] — Um Ordálio De Rosas", album fotográfico elevado ao estatuto de 'obra de culto', concebido conjuntamente pelo seu 'autor', propriamente dito,  Eikō Hosoe [細江英公, Hosoe Eikō, n. 1933], e pelo seu 'objecto', Yukio Mishima [三島由紀夫,  14.02.1925 — 25.11.1970] himself, entre Setembro de 1961 e o Verão do ano seguinte, e publicado pela primeira vez, em meados de 1963 numa magnífica edição de dimensões alargadas e cujas escassas cópias — mil e quinhentas ao todo — foram autografadas uma à uma por ambos os seus criadores, atingindo hoje, e no mais dos casos, valores verdadeiramente proibitivos nos mercados livreiros onde circulam, podeis conhecê-la AQUI [in English] pelas palavras do próprio Hosoe Eikō e a propósito de uma reedição muito recente e não menos cobiçada que a APERTURE FOUNDATION, titular dos direitos de edição em Língua Inglesa das obras de Hosoe, cuidou de lançar ainda em 2009, assim creio eu, tendo em vista o eventual interesse que o nome Mishima Yukio (res)suscitaria por altura da passagem dos 40 anos sobre a data da sua morte (25 de Novembro de 1970). 


           Foi, porém, precisamente uma dessas raríssimas cópias da edição original, autografada, de 1963, a que recentemente, e como que por magia, me coube em mãos, gentilmente cedida por uma das várias bibliotecas desta mui nobre cidade de Hakata, por mim regularmente frequentada, e que surpreendentemente, ou nem por isso, se acha disponível  ao grande público para consulta e apreciação no conforto do lar...


          Nesta edição original de 1963, figura ainda a tradução em Inglês do seu título para "Killed By Roses" — VER foto que se segue ☟ —, o qual, posteriormente e por insistência do próprio Mishima, seria re-traduzido e re-impresso como "Ordeal By Roses", título pelo qual a obra passaria a ser melhor conhecida e vulgarmente referenciada, não obstante o facto de até 2009 ter sido objecto de apenas duas reedições no Japão e nos E.U.A, em 1971 e 1985, respectivamente. Numa interpretação literal, Barakei — 薔薇刑 — traduzir-se-ia mais correctamente ou melhor (em Português) para algo como 'Um Castigo de Rosas' ou 'Punido p'las Rosas', sendo 'castigo''punição' ou 'sentença', o significado comum do 3º Kanji [刑 — 'Kei']. 















Assinaturas de Hosoe Eikō [細江英公], à esquerda, 
e de Mishima Yukio [三島由紀夫], à direita.
1ª Edição de "Barakei", 1963. 




















           "As palavras constituem um meio pelo qual toda a realidade se vê reduzida a uma abstracção destinada à sua percepção num plano puramente racional, e é precisamente no âmago do seu extraordinário poder corrosivo da própria realidade que espreita o perigo de as próprias palavras se degradarem. 

            "Não será, de todo, despropositado, afinal, comparar a sua acção, e a título de exemplo, a ess'outra de um certo excesso de fluidos gástricos que ao agir na digestão daquilo que nutre um homem, gradual e inevitavelmente procede à destruição do seu próprio estômago.






           "A maioria de vós manifestar-se-á descrente da ideia de que um tal processo se possa instaurar no íntimo de alguém logo desde os primeiros anos de vida.  Porém, sem sombra de dúvida, foi precisamente o que se passou comigo, e a um nível muito pessoal,  desbravando-se assim o território onde duas tendências que se me impuseram desde então e em conflito, haveriam de colidir. Uma levar-me-ia a prosseguir  com determinação e compromisso na demanda da força corrosiva das palavras, convertendo-se na obra da minha vida. A outra era o desejo irreprimível de encontrar uma outra realidade, um foro no qual às palavras não coubesse qualquer desempenho."




MISHIMA YUKIO,  in "Sol e Aço" [太陽と鋼], 1967   











          Mishima trataria de desenvolver o tema da apetência pela aquisição de força física, musculada, apta a uma vida de acção, numa das suas últimas obras: o ensaio de 1967 intitulado "Sol e Aço" [太陽と鋼 — "Taiyō to Hagane"], escrito sobremaneira hermético no seu esforço dissertante, mas ainda assim fundamental enquanto leitura incontornável para todos quantos pretendam inteligir o peculiar processo espiritual pelo qual o reverenciado homem de letras se forçara à conversão numa figura ero-vilânica, um dandy de posters 'camp', ícone de um certo estrelato mediático do seu tempo e que acabaria por se tornar numa espécie de 'embaraço de referência' para as gerações sucedâneas e em particular para aqueles que haveriam de ocupar o seu lugar enquanto vulto maior do Século XX literário do seu país.





          O narcisismo militante de "Barakei" poderá surgir, aos olhos de alguns, como um mero e execrável exercício de auto-promoção desenfreada, puro kitsch, paródia inconsciente e inconsistente de um fardo de quimeras do íntimo a roçar o grotesco. 
              Não deixa, contudo de ser um momento extraordinário numa vida ela mesma absolutamente extraordinária. 
           Mishima sabia perfeitamente o que estava a fazer quando, pela primeira vez, se deixou fotografar pela câmera de Hosoe, nesse fim de Verão de '61, e quando lançou mão à preparação da obra em formato encadernado. O controle que exercia sobre empreitadas desta monta era total e intransmissível.
          E recordemos ainda, a este respeito e a fechar, a 'advertência' de Henry Scott Stokes, amigo dos seus últimos anos de vida e seu biógrafo, ao citar o próprio Mishima: "Queria fazer da minha vida um poema..." — palavras dispersas entre as suas anotações do tempo da redacção de "Confissões de Uma Máscara"[仮面の告白], de 1949.


             Se outros versos não houvesse, haveria sempre os deste Ordálio de Rosas.


             A contemplar. 

















































































































































































3 comentários:

  1. Chest

    ''Death is not necessarily an old and withered book
    with dry pages.
    It can be a thousand leaves
    of strong and shining text
    on a powerful body,
    held erect on the vertebrae of a strong spine.

    The heart hardly breathes because quietus has been reached,
    the torso is like a rock,
    the legs are rooted, the ink is dependable.

    if the words of death should be considered faded and
    sere - where could be the dignity in dying?

    Unlike water, paper does not freeze or condense into steam. It does not boil.
    The book to end all books.
    The final book.
    After this, there is no more writing
    no more publishing.
    The publisher should retire

    The eyes grow weak, the light dims.
    The eyes squint. They blink.''

    Belly

    ''The world is prey to a failing of focus.
    The ink grows fainter but the print grows larger. In the end, the pages only whisper in deference.
    Desire lessens.
    Although dreams of love still linger,
    The hopes of consummation grow less,
    What could be the end of all these hopes and desires?''
    ...

    NBJ....Hoje perfuras a minha Alma com o que vai além do Belo....
    Só te posso agradecer por estes 2 ultimos 'posts' sobre Mishima.
    Um abraço sensibilizado.
    Blue

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  2. Obrigado eu, do Coração, Blue.

    Este é para ti.

    Bjx.

    NBJ

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  3. http://www.youtube.com/watch?v=L3reb4SFin8

    Beijo agradecimento

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