(Da Euforia à Hecatombe, I)
No dia em que se assinalam 70 anos sobre o Shinshu'Wan Kogeki — 真珠湾攻撃, o ataque da aviação naval imperial de 7.12.1941 a Pearl Harbor, e como o mesmo é referido no Japão —, mais do que reverter para as costumeiras evocações do antes, do porquê e do como — tudo potenciais presas fáceis de uma certa paranóia prodigalizada em múltiplas teorias conspiratórias e mitomanias que nos dias de hoje se reproduzem como coelhos em cativeiro e a propósito de tudo e mais alguma coisa —, afigura-se-me bem mais adequado convosco hoje partilhar uma mão-cheia de reflexões pessoais sobre o depois, e porque é bem mais esse depois que sobre o Japão de hoje ainda pesa, funesto, absoluto e intransigente, e mais que toda a restante memória histórica recente, e num tempo de mudança acelerada no cenário político e geo-estratégico da Ásia, a que assistimos hoje, impassíveis, pelo que urge, agora mais que nunca, agitar o debate — um debate que se quer sério, rigoroso e conclusivo.
Foi em Setembro passado, se não me falha a memória, e, ao que creio, em jeito de antecipação da memória comum hoje invocada, que tive o privilégio de, em casa, um certo serão, visionar um documentário televisivo via NHK, onde a tragédia dos anos da Guerra se despia defronte das câmeras, com um despudor sem precedentes que aqui pudesse recordar a título de referência.
No dito programa, destacava-se uma impressionante colecção de testemunhos na primeira pessoa, saídos das bocas desses homens que a História do último século fez protagonistas à força de alguns dos mais medonhos episódios de desumanização em massa de que há memória, e como a imaginação comum de hoje mal consegue conceber algo assim ser possível.
Veteranos de Kokoda e Brigade Hill, combatentes das selvas da Nova Guiné — veneráveis idosos de hoje — e outrora destinados ao supremo sacrifício de defender até ao último homem posições desesperadas em território mais hostil que o próprio inimigo, meses e meses a fio cortados de abastecimentos e desprovidos dos mais elementares recursos necessários a uma sobrevivência condigna, assim entregues à inclemência da selva, do calor ardente dos trópicos, da doença e da fome, e tudo isto narrado num surpreendente registo em tom genericamente sereno e descomprometido, dissertando sobre o recurso à necrofagia e ao canibalismo como último expediente de sustento do corpo, num tempo de desespero e completo abandono do amanhã...
Os relatos sucediam-se numa cadência descritiva quase neutra, ainda que ponteada aqui e ali por sorrisos envergonhados, olhares cabisbaixos, silêncios agudos entre afirmações corroídas por emoções mal contidas, onde orgulho, mágoa e incredulidade se imiscuem e dissipam... Depoimentos de frente para a câmera, e sem trejeitos de língua, sem eufemismos, sem auto-comiseração.
Um relato, porém, se destacava. Este, de rosto deliberadamente ocultado na penumbra das sombras de um quarto modesto, feito só da voz de quem, como uma arca de pesadelos que se abrisse à estupefacção geral, esgravatava o fundo da memória má e esmiuçava detalhes, detalhes de um horror inenarrável, e sem disfarçar a angústia do exumar da vergonha e da dor que se carrega uma vida inteira contra à vontade própria de quem ainda se afirma humano. E a voz concluía o seu depoimento com uma interrogação comovida e desarmante: "Que fui eu lá fazer?... Diga-me... Que fui eu lá fazer, miúdo de vinte anos, àquela selva?... Porquê passar o que ali passámos?... "
O documentário prosseguia noite adentro, se bem me lembro, revisitando outros cenários, outras tragédias, outras más recordações desse tempo delas só feito, cápsula apertada de toda a dor de uma nação — a chacina de guarnições inteiras na defesa de cada frente indefensável, ilha a ilha, em vãs cargas de baioneta e sabre em riste, rechaçadas pela fria mecânica da metralha inimiga, o melhor da juventude de um país atirada em inúteis voos suicidas contra navios impávidos na arrogância da sua notória superioridade, a frente doméstica de '44-'45, o sofrimento jamais esquecido das populações civis, alvo das bombas de fósforo branco de Le May sobre Tokyo, Nagoya, Osaka, Kobe, Sasebo, Fukuoka, da tempestade de aço sobre Okinawa, da fúria atómica sobre Hiroshima e Nagasaki, e ainda a fome, a destruição, as labaredas a consumir casas, fábricas, escolas, templos, igrejas e hospitais, bairros inteiros; a orfandade de quem nunca entendeu o porquê de tanto sacrifício, tanta miséria, tanta devastação e tanta morte vã.
Um país inteiro, de milenar história e cultura, precipatado em menos de uma década para a sua quase-aniquilação total, eis o saldo final do aventureirismo belicista e inconsequente de um tempo hoje estranhamente distante.
E ao fim e ao cabo, tudo se resume à incógnita dess'outro incógnito veterano da frente da Nova Guiné: "Que fomos NÓS lá fazer?... Porquê passar o que ali passámos?..."
É impossível, pois, e face a tamanho mostruário de sacrifício apocalíptico, duvidar da genuinidade do pacifismo ainda dominante na sociedade nipónica de hoje, e ainda que a memória colectiva sofra a erosão, efeito da mudança dos ventos e marés da história mais recente, mormente quando o esporádico flectir do músculo militar de uma República Popular da China ou de uma Coreia do Norte ecoa o medo do esquecimento e da má ventura da guerra no horizonte.
O pacifismo japonês enraizado na hecatombe de 1945 tem, portanto, mais-que-ampla razão de ser, e o anseio de Eterna Paz não peca, pois, por cinismo. Porém, e como em Setembro de 2009, num artigo de opinião publicado então no Mainichi Shinbun e a propósito dos ecos do programa nuclear Norte-Coreano, nos recordava o Professor Iokibe Makoto, Presidente da Academia de Defesa Nacional do Japão, citando então Sun-Tzu: "Um país viciado na guerra aniquilar-se-á a si mesmo, mas um país que se esquece de como fazer a guerra será aniquilado por outros."
(A continuar)
太平洋戦争開戦ラジオ放送
(Anúncios radiofónicos à Nação, 1941-42)
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Caro Luís,
ResponderEliminarVou seguir atentamente.
Abraço