É, creio eu, de todos sabido o quanto a figura histórica do Imperador Shôwa - ou Hirohito, como é melhor recordado no Ocidente -, soberano do Japão de 1926 a 1989, permanece enredada em recorrentes controvérsias - designadamente no que respeita ao seu desempenho e responsabilidades política e pessoal nos trágicos eventos que afamaram o Japão desde os anos do expansionismo agressivo na Ásia até ao final da II Guerra Mundial, mas também, e sobretudo, pela peculiar situação em que a vitória aliada sobre o Japão em 1945, o deixou a ele e à casa imperial, enquanto símbolos (alegadamente) maiores e mais sacralizados da cultura, da nação e da identidade nipónicas.
No Japão, o tabú que vela a figura do Ten'Ô Shôwa, não poderia ser mais firme, espesso e inexpugnável, do que é hoje: fala-se, ao que parece, muito mais hoje do que há 30, ou mesmo há 20 ou 15 anos atrás, da "Grande Guerra da Ásia Oriental" (como certos círculos políticos e "educativos" no Japão, insistem em didacticamente nomear o somatório dos conflitos e campanhas militares envolvendo o Japão de 1931 a 1945), publicam-se mais livros de teor crítico e acusatório sobre os alegados crimes perpetrados pelo exército imperial (como o massacre de Nanking, ou as operações levadas a cabo pela sinistra Unidade 731), fazem-se mais filmes, mais séries de televisão, mais exposições, mais debates públicos e com maior (?) abertura (? - e tenho mesmo que deixar aqui as interrogações...) à sociedade e ao mundo do que alguma vez antes se vira...
...Mas, quando queremos ouvir falar, um pouco só que seja, do Ten'Ô (termo que significa literalmente Soberano Celestial) Shôwa, o silêncio é sepulcral.
E foi, por isso, que, com surpresa, em data bem recente, dei de caras, aqui no Japão e pude apreciar - mercê do facto de o título se achar disponível em DVD por cá - esta extraordinária obra cinematográfica do cineasta russo Alexander Sokurov, "Solntse" no original, "The Sun" de seu nome na versão anglo-americana, "太陽" - lê-se "Tai-you" -, na cópia de cá.
O espanto não poderia ser maior, uma vez que se trata de um filme trazido a público, ao que parece, em 2004, altura em que eu me achava ainda em Portugal e, das duas uma, ou andaria eu muito distraído na altura em que terá sido exibido nas salas de cinema do nosso país, ou então nunca lá passou de todo... E corrijam-me, por favor, se estiver a cometer algum equívoco.
E também, porque ao que sabemos, o filme correu o risco de pur'e simplesmente não ser visionável no Japão, devido aos receios que, à época do seu lançamento, se avolumaram, de uma possível recepção hostil e boicote por parte dos chamados Uyoku - grupos de extrema-direita locais.
"Solntse/O Sol" insere-se, ao que consta, numa tetralogia idealizada por Sokurov, centrada, esta, em lideranças/tiranias do Século XX (caberá a cada espectador captar o significado do elo entre os protagonistas de cada um dos filmes e falta ainda, ao que parece, concluir o último dos quatro, o qual permanece ainda envolto num certo mistério...), e, a par do filme que foca Hirohito, contam-se os já estreados "Moloch" (Hitler) de 1999, e "Taurus" (Lenine) de 2000.
Confesso que não tive ainda a oportunidade de ver os outros dois filmes.
A verdade é que este "Taiyoo/O Sol" é uma obra em tudo singular e de inequívoco mérito maior.
O filme foca precisamente o momento da assunção da derrota em 1945, pelo Imperador, pelo seu governo e pelo seu povo, e a hora em que se joga a verdade do destino que lhe(s) será reservado, pelos vencedores, para o que o futuro ditar...
Sokurov descarta desde logo as pretensões de rigôr histórico ou de fiabilidade dos diálogos que, às mãos de outras produções assumiriam um relevo próprio de encenações documentais, ao estilo History Channel.
Porque não é necessariamente da verdade ou do que queiramos fazer dela que o filme trata.
É antes e isso sim, o retratar num estilo muito sui generis de um homem - que era "mais-que-homem", antes um deus proclamado como tal pela e entre a sua gente - sobre quem pesa uma inadiável urgência de se converter tão só... num homem de facto: comum, cárneo, mundano, falível, risível - "This guy is Charlie!" avençam entre risos e incredulidade os fotógrafos americanos que cobrem de flashes um sorridente e simplificado Heikka (Majestade) junto a um canteiro de flores, trajando um leve e turístico fato de verão (e depois de previamente haverem tomado um dos seus criados pelo próprio...), numa das mais memoráveis cenas do filme.
Hirohito - na figura do actor Issey Ogata, numa das mais conseguidas e perturbantes criações interpretativas que vi nos últimos dez anos - vagueia sereno, conduzido como que por uma força fantasmagórica, pela cerca de hora e meia de película, entre a ante-câmara palaciana do seu refúgio privado (o laboratório de biologia), o bunker onde se reúne pela última vez com o seu estado-maior, os jardins da vila imperial, o salão de recepções da embaixada americana, entretanto re-confiada a Douglas MacArthur, pelos escombros de uma Tokyo desvastada por sucessivos bombardeamentos de saturação...
Entre diálogos muito sóbrios e de grande acessibilidade e silêncios mais-que-eloquentes, "O Sol" traz-nos ainda um pequeno leque de prestações irrepreensíveis, numa, geral, magnífica direcção de actores - onde apenas estranha a escolha de um menos adequado Robert Dawson no papel de MacArthur, num registo pálido e até mesmo algo frouxo, diria, para a qualificção pretendida, e face aos desempenhos magistrais de Ogata (Hirohito) e de Shiro Sano (no papel do sobre-escrupuloso camareiro do imperador).
"O Sol" é, sem dúvida, um filme que transcende largamente a estreiteza dos cenários - histórico e visual - em que se desenlaça, e suspeito, que ficará mesmo como uma referência maior (pelo menos para mim) para uma certa cinematografia de excelência do nosso tempo.
Se não o viram já, então vasculhem onde vos aprouver, mas tratem lá de sacar uma cópia em DVD ou n'outro formato qualquer e ver a estranha luz deste Sol.
Imperdível.