sexta-feira, 24 de setembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Quem sente a falta de um bom 'Jidai-Geki'?...


...Eu sinto. E por mais descabida que soe tal afirmação, vinda de alguém que vive no país dos samurai, dos bushi, e bem assim dos ronin e shinobi, da vasta filmografia desse cinema que, mais que qualquer outro media, contribuiu de modo determinante para a mitificação dessa nobre casta de imperturbáveis homens, leais combatentes de katana em riste, impávidos diante da Morte, serenos em face de perigos muitos, inabaláveis na sua lealdade ao feudo, ao seu Daimyo, seu estandarte ou à pobre gente sedenta de justiça num Japão medievo e cruel...

'Jidai Geki' [時代劇] — 'dramas históricos', numa tradução mais-que-livre da expressão —, 'chambara' (outro termo popular que deriva das elaboradas cenas de combate dentro do género) são, aqui, mais que muitos.
Clássicos de inegável mérito artístico, num longo catálogo de escolhas mui recomendáveis, quase invariavelmente, na vasta maioria dos casos, tendo por pano de fundo esse Japão arcaico dos Tokugawa, um tempo de 'pacificação' do Império insular dos Kami, onde, porém, devassidão, perfídia e intrigas de toda a ordem se multiplicavam como pragas sazonais, e, logo assim, o tecido e linha com que se cosem ou remendam estas histórias de capa e espada à moda da casa, dão vasto material a muito entertainment audio-visual.
Aqui, cobrem a programação televisiva, se não diariamente, numa cadência muito regular, da manhã ao serão em família e pela madrugada adentro — sofrendo, contudo, nos dias de hoje a curiosa concorrência do correspondente género 'made in Korea', mas nem por isso se pode dizer que seja hoje um estilo em declínio.

O certo é que, se bem que os clássicos são os clássicos, valendo o que valem — AQUI um exemplo de referência, AQUI outro, AQUI outro do além, AQUI outro ou outros revistos e revisitados até à exaustão, mais OUTRO aqui... (e queiram perdoar-me a publicidade inusitada à editora linkada em todos os casos, mas melhor não há, verdade seja dita) —, uma larga camada do comum 'Jidai Geki', em boa parte dos casos, entrelaçada em intrigas sobre-complexas, com intrincadas peripécias de permeio a laborar na trama essencial, teias familiares que quase requerem um especialista ao nosso lado para nos avivar a memória de quem é quem, e uma linguagem teatral, algo inacessível, em muitos casos enraizada na tradição do Kabuki — de onde aliás provieram um ou outro nomes sonantes do género —, não facilitam, em muitos e lamentáveis exemplos, o visionamento e apreciação destas obras, seja no formato longa-metragem ou das inúmeras séries televisivas que ainda hoje passam ora repassam no pequeno-ecrã nipónico.
Sucintamente: o 'Jidai Geki' nunca foi um género privilegiado como produto de exportação, mas concebido, isso sim, essencialmente para 'consumo da casa'.

De qualquer modo, trata-se de um género temático cuja produção em grande escala, tem vindo a sofrer a erosão dos tempos e dos gostos e tende a abrandar mais e mais com o passar das décadas.
Há uns oito, seis anos ainda tivemos um singelo e atípico "Tasogare Seibei", de Yamada Yoji — com a sempre auspiciosa presença de um Sanada Hiroyuki —, seguido de um certo "Kakushi Ken", do mesmo cineasta — e do qual não me recordo sequer de o ter visto passar, de soslaio que fosse, pelas salas europeias — filmes que, para todos os efeitos, se inscrevem na tradição estética/temática do 'Jidai Geki' e que sugeriam uma certa ambição de revitalização do estilo, mas que, não obstante todas as virtudes que lhes possamos reconhecer, parecem ter ficado pelas boas intenções e pouco mais que surtisse efeito.

Não obstante, o 67º Festival de Veneza, que decorreu há poucos dias, trouxe-nos o que, não sendo propriamente uma surpresa — trata-se de um remake, cujo original, de 1963, pela mão de Eiichi Kudo, permanece envolto num intocável estatuto de culto —, parece prometer trazer um novo fôlego ao 'chambara' de gosto clássico.



"Treze Assassinos" [十三人の刺客 — Ju'san Nin No Shikaku], de Miike Takashi, não terá vindo para fazer história na trilha da Sétima Arte Nipónica, mas terá a legítima ambição de agitar os nossos ânimos, e se não colheu galardões de pôr na montra, pelo menos colheu alguns (bem merecidos?) aplausos.
Trata-se da novíssima obra de um realizador celebrizado pelo 'gosto' gore, sanguinário, de "Audition" [オ—ティション, 1999] e "Ichi, The Killer" [殺し屋1, Koroshiya Ichi, 2001], filmes muito apreciados entre os 'fans' do género e que, por comparação com esta nova incursão pelo território do 'Jidai Geki', revela este um Miike num estado de humor sobremaneira mais soft.

História de um tiranicídio rocambolesco, "Ju'san Nin No Shikaku — Treze Assassinos", conduz-nos até ao Japão tardo-feudal do último quartel do Período Edo (Ano de 1844), momento em que a fulgurante ascensão no seio da corte dos Tokugawa de um perverso facínora, levam um escrupuloso dignatário do Bakufu a procurar auxílio com vista a uma solução 'drástica' da questão em causa.
A sua busca leva-o até Shimada Shinzaemon, um samurai de nomeada, homem temido nas lides do sabre e de elevada reputação. Hesitando de início, Shinzaemon é levado a aceitar a missão que o contratante lhe propõe, prestando-se a reunir, para o efeito, um pequeno e, não obstante, temível séquito de onze homens de armas de sua confiança, aos quais um décimo segundo vem a somar os seus préstimos, reunindo-se assim a força 'operacional' que dá título ao filme.

O pequeno exército liderado por Shinzaemon, prepara então uma elaborada cilada destinada a dar caça ao pérfido déspota, apanhando-o, bem assim como à sua escolta, de surpresa no curso de uma viagem que o mesmo irá empreender a breve trecho. Sucede que, face à aproximação do alvo e seu séquito, Shinzaemon e seus camaradas se apercebem que irão encontrar pela frente uma força adversária muito superior em número e em meios àquela que haviam antecipado aquando do planeamento da operação em curso, facto que leva os treze a ter que reconsiderar todo o plano de ataque ab initio.
Como é evidente, um ou outro elemento nesta história sugerem ser mais que meras reminiscências daquele que será reconhecidamente o maior feito de sempre no género (de resto não creio que haja um só 'Jidai Geki' feito desde então que não tenha ido lá beber da mesma fonte...), a meias com um óbvio paralelo com a ocidental epopeia dos Trezentos das Termópilas, 'musa' de inúmeras colheitas da mesma casta. Nada de mal.
Foi-se o tempo e o génio de Kurosawa, Kobayashi, Gosha ou Inagaki, foram-se também os inestimáveis talentos de lendas de fazer tremer a voz — Ichikawa Raizō VIII, Mifūne, Shintaro Katsu (o 'verdadeiro' Zatoichi) ou do seu irmão mais novo Tomisaburo Wakayama ('O Lobo Solitário' na celebrada adaptação cinematográfica do não menos lendário seinen manga homónimo da Kazuo Koike e Goseki Kojima, na década de 70), enquanto Tatsuya Nakadai goza hoje a tranquilidade da reforma...
Não é caso para desanimar. Ainda não tendo visto o filme que serve de mote a este escrito — estreia marcada para daqui a uns dias no país-natal —, quero crer que é a imprevisibibilidade própria de um filme desta natureza nas mãos de alguém como Miike Takashi e Jeremy Thomas, aliado a talentos hodiernos como Kōji Yakusho ou Tsuyoshi Ihara, aquele impulso que pode reanimar um género aparentemente moribundo — quem já esqueceu o estado em que estava o Western antes de Eastwood lhe dar uma valente massagem cardíaca? — e trazê-lo de novo e em força ao grande ecrã para gáudio de saudosistas como eu e de quem mais adora 'um bom filme de samurais'.

Este eu quero ver.